“I have a dream” ou “eu tenho um sonho” – essa frase ficou famosa graças ao discurso de Martin Luther King, em Washington, na chamada “Marcha de Washington" ou "A Grande Marcha", ato convocado por organizações religiosas, sindicatos e movimentos populares em prol dos direitos civis da população negra dos Estados Unidos, movimento que inspira até os dias atuais a luta pela igualdade e fraternidade ao redor do mundo.
Na última semana, eu tive um sonho, o qual não poderia deixar de compartilhar com todos. Sabemos que em novembro próximo, mais especificamente na segunda quinzena de novembro, teremos uma nova eleição para as seccionais da OAB–Ordem dos Advogados do Brasil em todo o país.
Neste ano, talvez estimulados pela desastrosa polarização política partidária que se revela para as eleições nacionais em 2022, vários grupos já se articulam e, como é de se esperar de um processo democrático, críticas se afloram e os mais diversos argumentos são lançados pelos protagonistas do processo eleitoral.
É bem verdade que muito provavelmente o referido sonho que agora compartilho com todos, nasceu de uma inesperada realidade vivenciada em pesadelos de dias anteriores, pesadelo de ver estampada nas redes sociais a foto de um pré-candidato ocupando lugar de destaque durante a divulgação de lançamento de obras da atual gestão.
Em ato contínuo, e não menos aterrorizante, a chamada “Caravana da OAB” estampa as redes sociais e o site da instituição, se espalha pelos grupos de WhatsApp, para em tempos prévios de eleição, “verificar in loco a realidade da advocacia em vários cantos de Mato Grosso”, como se tal fato não pudesse ser efetuada de maneira menos pirotécnica do que a atualmente adotada.
A tentativa de troca do comando das seccionais é objeto pouco regulamentado pelo Estatuto da OAB, a Lei nº 8.906/94, que reserva diretamente apenas os artigos 63 a 67 para importante tema que, por sua vez, ganha importância no Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, em seus artigos 128 a 137-C, sendo pormenorizados nos Provimento nº 146/2011, com suas alterações sucessivas, tendo sua alteração mais recente fruto do Provimento 5/2020.
Em toda a legislação sobre o assunto, fica bastante evidente um certo descompasso entre as partes integrantes do processo eleitoral, principalmente, quando falamos da indispensável paridade de condições dos candidatos, essência de um processo eleitoral justo, a exemplificar pela forma unilateral e incompreensível que ocorre a formação da comissão eleitoral.
Talvez a ausência da busca de igualdade de condições entre os postulantes durante o processo eleitoral ocorra pelo simples fato de que grande parte das seccionais espalhadas pelo país apresentam pouca ou nenhuma alternância de grupos em sua direção, em alguns casos mais parecendo um reduto oligárquico de poucos “renomados” advogados que perpetuam seus candidatos quase que por apadrinhamento político na direção de nossas seccionais.
Várias seriam as reflexões que poderiam ser trazidas pela respectiva foto ou pela já tradicional e politizada caravana em tempo de eleição e pandemia, sendo evidente que em confronto literal com as supracitadas legislações, nenhuma seria a ilegalidade encontrada. Porém, já não sabemos se tais condutas seriam aprovadas pelo crivo da mais simples ética e moral desejável até mesmo durante o processo eleitoral para o cargo de síndico condominial.
Mas, assim como o pastor Martin Luther King, eu tenho um sonho, talvez muito distante da realidade atual, mesmo em uma organização indispensável à administração da justiça.
Tenho um sonho de um processo eleitoral ético, afastado do constante abuso de poder econômico, ou mesmo da inexplicável utilização dos recursos coletivos para promoção desta ou daquela candidatura.
Um sonho de uma Ordem apartidária, a disposição dos reais anseios da categoria e efetiva na prática dos fundamentos constitucionais mais humanitários.
Um sonho de mudança e esperança na condução das prioridades da nossa classe, abandonando interesses pessoais ou projetos de poder de um pequeno grupo, em detrimento do bem-estar de toda a coletividade.
Um sonho de talvez poder votar de maneira direta para nosso presidente nacional, sem o indesejável e inexplicável processo de costura da famigerada eleição indireta e, quiçá, me sentir representado na batalha de posts travada nacionalmente.
Um sonho de avançar nas pautas mais sensíveis aos pequenos advogados, qual seja, um piso digno e formal para a categoria dos advogados empregados, regras claras para licitações na contratação de escritórios ou mesmo na nomeação de auxiliares da justiça.
Um sonho no qual nenhum advogado será afrontado em suas prerrogativas, e que a atuação da Ordem seja a bússola para o avanço em temas cruciais e caros à sociedade, tais como o combate à corrupção e a defesa dos direitos humanos.
Um sonho de que a população, graças à atuação ética da Ordem, do Congresso Nacional e do Judiciário, possua efetivamente um processo célere e justo.
E por fim, e por que não dizer, um sonho de uma candidatura que represente o anseio da advocacia mais simples, daqueles que, na esperança da justiça, ardem em amor pela profissão, mesmo diante de todas as dificuldades enfrentadas diariamente.
É evidente que nossa instituição, por possuir caráter privado, não está sujeita às normas gerais de regulação às eleições político partidárias, e nem poderia ser diferente, pois renunciar à nossa autonomia para o controle externo em nossas eleições, mesmo que pela elevadíssima justiça eleitoral, representaria algo ainda mais letal que a desgraçada oligarquia financeira que se opõe em alguns estados da federação.
Por tudo dito e sonhado, a ética e moralidade se impõe a todos os envolvidos de alguma forma no processo eleitoral, sendo imperioso a todos repensarem as práticas de determinados atos lesivos à paridade dos candidatos, sobretudo, a utilização de recursos coletivos que estão sob sua responsabilidade para utilidade comum.
A advocacia nacional deve ficar atenta à ausência de alternância de poder, a atuação de grupos que se perpetuam historicamente na direção das seccionais, as ações e promessas de última hora, ao abuso de poder econômico e, principalmente, ao uso mesmo que eventual, da estrutura institucional em favor desde ou daquele candidato, fatos que devemos rechaçar, obviamente por serem contrários a própria essência da Ordem dos Advogados do Brasil.
Vigilante e esperançoso em uma nova ORDEM, eu tenho um sonho.
Ulisses Garcia Neto é advogado e professor universitário.