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Cuiabá, 15 de Julho de 2025

Opinião Terça-feira, 15 de Julho de 2025, 15:40 - A | A

Terça-feira, 15 de Julho de 2025, 15h:40 - A | A

LORENA LARRANHAGAS

Produtor rural em Recuperação Judicial: A inexistência de dualidade de sujeitos

A inscrição do produtor rural na Junta Comercial não cria uma pessoa jurídica, mas apenas formaliza o exercício da atividade econômica

Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum, especialmente em Mato Grosso, o ajuizamento de pedidos de recuperação judicial por produtores rurais regularmente inscritos como empresários na Junta Comercial.

Contudo, decisões judiciais recentes têm revelado uma distorção conceitual preocupante: o deferimento da recuperação apenas em relação ao CNPJ, excluindo seus efeitos quanto à pessoa física, isto é, ao CPF. Essa leitura, embora aparentemente formal, é tecnicamente equivocada e contrária à lógica jurídica aplicável ao empresário individual.

A inscrição do produtor rural na Junta Comercial não cria uma pessoa jurídica, mas apenas formaliza o exercício da atividade econômica. A Lei nº 14.112/2020, ao reformar a Lei de Recuperações e Falências (LRF), deixou clara a possibilidade de recuperação judicial tanto para pessoas jurídicas quanto físicas. No caso do produtor pessoa física, o registro o equipara a um empresário sujeito a inscrição (art. 971 do CC), sem, no entanto, conferir-lhe personalidade jurídica própria.

A diferença entre empresário individual e sociedade empresária é substancial. Enquanto as sociedades (limitadas ou anônimas) adquirem personalidade jurídica após o registro de seus atos constitutivos, o empresário individual é a própria pessoa natural desenvolvendo atividade empresarial. O CNPJ funciona como um número de identificação fiscal e administrativa, mas não constitui uma entidade autônoma.

Restringir os efeitos da recuperação ao CNPJ ignora essa unicidade patrimonial.

O produtor rural, via de regra, não possui dois patrimônios, mas apenas um, indivisível, que responde integralmente pelas obrigações contraídas no exercício da atividade. Permitir a execução de bens vinculados ao CPF compromete diretamente o cumprimento do plano de recuperação judicial e a continuidade da atividade rural, frustrando os objetivos centrais da LRF: preservação da empresa, manutenção de empregos e satisfação organizada dos credores.

Essa interpretação também desconsidera uma realidade recorrente no campo: muitos ativos essenciais, como terras, máquinas, rebanhos e benfeitorias, estão formalmente registrados em nome da pessoa física, por motivos históricos, culturais e tributários. Mesmo após o registro como empresário individual, é comum que esses bens permaneçam associados ao CPF.

Admitir sua execução como se fossem estranhos ao processo é, portanto, incongruente.

A correta aplicação do art. 6º, § 7º-A da LRF exige uma leitura que reconheça esse cenário: bens registrados em nome da pessoa física do produtor podem ser considerados de capital essencial à produção e, por isso, protegidos pela recuperação judicial.

A dicotomia entre CPF e CNPJ do empresário individual é uma construção artificial que esvazia, na prática, a efetividade da recuperação judicial para produtores rurais pessoa física. Cria-se uma contradição: admite-se o processamento da recuperação, mas se permite a execução do único patrimônio que a sustenta.

A solução mais coerente é reconhecer a indivisibilidade entre a pessoa natural empresária e a atividade registrada. A recuperação judicial deferida ao produtor com CNPJ vinculado à sua atividade deve necessariamente alcançar seu CPF, ambos são expressões de uma mesma realidade jurídico-patrimonial.

Esse entendimento, além de tecnicamente mais adequado, fortalece a efetividade do regime de insolvência empresarial, essencial à continuidade das atividades no setor agropecuário. A interpretação judicial não pode se prender a distinções meramente contábeis ou fiscais quando a realidade demonstra integração plena entre sujeito e atividade.

É imprescindível que o Judiciário esteja atento a essas especificidades, para que a função social da empresa e a efetividade da recuperação não sejam comprometidas por formalismos dissociados da realidade econômica e jurídica do produtor rural brasileiro.

Afinal, não há empresa a ser recuperada sem a preservação do único patrimônio que a sustenta: o do produtor rural pessoa física que, por força de lei, também é empresário.

Lorena Larranhagas é administradora judicial, mediadora e advogada. É membra da Comissão de Estudos da Lei de Falência e Recuperação de Empresa da OAB/MT e OAB/SP, da Comissão Especial da Advocacia Empresarial e da Comissão do Agronegócio da OAB/SP, além de ser membra do Instituto Brasileiro da Insolvência (IBAJUD), do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR) e do International Women's Insolvency & Restructuring Confederation (IWIRC).