A discussão sobre a adoção do voto direto para a formação da lista sêxtupla da advocacia destinada ao quinto constitucional – nos termos do art. 94 da Constituição Federal – tem sido marcada por resistência institucional, discursos de preservação de suposta técnica e pela manutenção de um modelo excludente. Argumentos como o risco de populismo, desigualdade de acesso, captura do processo eleitoral por interesses escusos ou comprometimento da função institucional da OAB são constantemente invocados para justificar a perpetuação do modelo indireto. No entanto, tais fundamentos, embora mereçam ponderação, não se sustentam como justificativa suficiente para a inércia democrática da Seccional da OAB de Mato Grosso.
Os entraves apontados à adoção da eleição direta são legítimos, mas não intransponíveis. O que se evidencia, em realidade, não é a impossibilidade técnica de implementação do sufrágio direto, mas sim a persistente ausência de vontade política para modernizar os instrumentos institucionais em conformidade com as possibilidades democráticas do presente. Vivemos em uma era de hiperconectividade — caracterizada pela expansão digital, pelo engajamento virtual e pela disseminação instantânea de ideias a baixo custo. Ferramentas como redes sociais, plataformas de deliberação pública, regulamentações eleitorais internas bem delineadas, auditorias externas independentes e mecanismos eficazes de prestação de contas compõem um ecossistema normativo-tecnológico plenamente capaz de mitigar distorções, promover isonomia e fortalecer a legitimidade do processo eleitoral.
O cerne do desafio, portanto, não está no modelo em si, mas na capacidade da instituição de estruturar e aplicar salvaguardas que assegurem a integridade, a imparcialidade e a finalidade pública da seleção dos candidatos e candidatas. A hiperconectividade, nesse contexto, não deve ser compreendida apenas como um avanço técnico, mas como um instrumento político de inclusão, fiscalização e renovação das formas de exercício democrático — inclusive no interior de instituições tradicionalmente verticais e hierarquizadas, como a OAB.
A eleição direta, quando estruturada sob normas claras, regulação responsável e mecanismos de transparência efetiva, apresenta elevado potencial para ampliar a diversidade de perfis, fortalecer a representatividade e romper com a lógica de reprodução concentrada de poder que historicamente permeia os processos internos da Ordem. Ao conferir à advocacia a possibilidade de se manifestar diretamente por meio do voto, reconhece-se não apenas a legitimidade da sua pluralidade, mas também a importância de valorizar o engajamento de segmentos historicamente sub-representados — como profissionais do interior, advogados e advogadas, negras(os) e indígenas, cuja presença nos espaços decisórios institucionais não é tão significativa.
Por outro lado, a eleição indireta, tal como atualmente praticada, funciona, na prática, como mecanismo de preservação de privilégios e de articulações corporativas consolidadas. O modelo favorece detentores de expressivo capital político, econômico e simbólico, que dominam os circuitos decisórios da instituição e, com isso, inviabilizam a renovação dos quadros representativos. Advogados e advogadas com atuação de base, em regiões periféricas ou fora dos centros de poder da advocacia, embora detentores de notório saber jurídico e conduta ética ilibada, permanecem alijados do processo por não integrarem os núcleos hegemônicos da elite classista. Trata-se de um sistema que, em essência, reforça a exclusão estrutural sob a aparência de institucionalidade.
Ainda que os desafios à implementação da eleição direta sejam diversos, é possível superá-los mediante o fortalecimento de mecanismos regulatórios e o uso inteligente das ferramentas proporcionadas pela modernidade. Com a tecnologia como aliada e a democracia interna como horizonte, torna-se viável a construção de um modelo mais plural, transparente e representativo.
Nesse contexto, os desafios inerentes à implementação de um modelo de eleição direta não devem ser concebidos como impedimentos à sua adoção, mas sim como convites à qualificação institucional e ao aprimoramento das práticas democráticas no âmbito da Ordem. A função constitucional da OAB como entidade que exerce papel essencial à administração da Justiça impõe-lhe, nos termos do art. 44, I - do Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/1994), o compromisso com a promoção dos direitos humanos, da justiça social e da cidadania. Logo, a defesa da democracia interna não se trata de escolha política opcional, mas de obrigação estatutária e republicana. O voto direto para a lista sêxtupla qualifica a função institucional da OAB, pois rompe com os filtros elitistas e amplia a legitimidade da representação classista perante o Poder Judiciário.
É precisamente neste ponto que se insere o mais relevante desafio institucional da advocacia contemporânea: viabilizar, de forma efetiva, inclusiva e juridicamente legitimada, a consolidação da democracia interna não apenas como valor constitucional abstrato, mas como prática permanente e estruturante. Tal democracia deve ser orientada por princípios de transparência, pluralismo, isonomia e compromisso com o interesse público da classe. A experiência exitosa de diversas Seccionais da OAB que já implementaram modelos de eleição direta ou híbrida — a exemplo de Alagoas, Amazonas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Roraima, Santa Catarina e Sergipe (modelo direto), bem como Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo e Maranhão (modelo híbrido) — evidencia, conforme levantamento contido no relatório técnico de Fontes, Santos e Andrade Júnior (2024), a viabilidade concreta de adoção desses formatos sem prejuízo aos critérios de excelência técnica.
Os modelos supracitados demonstram que é possível compatibilizar meritocracia com representatividade, promovendo uma cultura institucional mais democrática e participativa. São doze Seccionais que, em cumprimento ao seu papel de promotoras da ordem democrática, reformularam seus processos eleitorais para garantir maior paridade de condições entre candidaturas e reforçar a legitimidade social e jurídica da composição do Quinto Constitucional.
O estudo elaborado pela Comissão Especial da OAB/SE representa um marco no aprimoramento democrático do processo de escolha da lista sêxtupla para o Quinto Constitucional, ao propor um modelo híbrido que conjuga democracia representativa e participativa, respeitando os parâmetros constitucionais e infraconstitucionais. A adoção desse modelo visa não apenas garantir maior autenticidade na representação da advocacia nos Tribunais, mas também assegurar equidade de gênero, representatividade racial e isonomia no acesso às candidaturas. Ao reconhecer a importância da transparência, da inclusão e da diversidade no processo de escolha, o relatório reafirma que a democratização do Judiciário — objetivo maior do Quinto Constitucional — exige não apenas sufrágio direto, mas mecanismos que assegurem a efetiva participação e o compromisso dos representantes com os valores e prerrogativas da classe. Nesse sentido, a democracia torna-se não apenas forma, mas conteúdo essencial à legitimidade da composição dos tribunais
Neste norte, a utilização de instrumentos como vídeos, lives, podcasts, newsletters e fóruns interativos permite que candidatos e candidatas apresentem ideias, propostas e trajetórias à base da advocacia com custo reduzido, assegurando paridade de condições e ampliando o debate público. Essa realidade, já experimentada em larga escala nas recentes eleições gerais do país, demonstra que a inovação tecnológica pode — e deve — ser incorporada à estrutura institucional como aliada da democratização e do fortalecimento do processo eleitoral interno.
Mais ainda, a instituição de um modelo híbrido de transição — que combine a eleição direta para uma pré-lista com a deliberação final pelo Conselho Seccional com base em critérios objetivos — representa uma alternativa sensata e juridicamente viável. Tal proposta respeita a autonomia institucional da OAB, resguarda os valores técnicos do processo e promove a democratização progressiva, nos moldes da razoabilidade exigida pela Administração Pública. É plenamente possível instituir um sistema misto em que a advocacia elege, por sufrágio direto, uma pré-lista representativa, cabendo ao Conselho Seccional, a partir de critérios objetivos e parâmetros de excelência, deliberar sobre os nomes que integrarão a lista definitiva.
Além disso, a instituição pode — e deve — exercer seu papel de vanguarda institucional ao inovar, por exemplo, com a criação de uma Plataforma Eleitoral Oficial com Paridade de Alcance, assegurando visibilidade uniforme a todos e todas postulantes, neutralizando distorções algorítmicas e promovendo maior justiça comunicacional no processo eleitoral. A criação de uma plataforma institucional da OAB, com espaço equitativo destinado à apresentação das candidaturas, constitui medida eficaz para neutralizar distorções algorítmicas das redes privadas e assegurar isonomia na visibilidade dos postulantes.
Os obstáculos à adoção da eleição direta não são de natureza estrutural, mas resultam de um contexto institucional que pode — e deve — ser transformado por meio de vontade política, inovação normativa e compromisso com a democracia interna. A manutenção exclusiva do modelo indireto revela apego a uma lógica excludente, anacrônica e autorreferenciada, que opera em dissonância com os princípios republicanos e com a realidade plural da advocacia contemporânea.
A modernidade e a contemporaneidade oferecem, com abundância, os meios técnicos e institucionais para a construção de um processo eleitoral mais justo, transparente e inclusivo. Cabe à diretoria conduzir com responsabilidade e cabe à advocacia exigir as garantias democráticas que lhe são de direito. E cabe à OAB, diante desse novo horizonte, decidir se continuará a ser um reduto restrito de poucos ou se assumirá, com coragem institucional, o papel de expressão legítima e plural da advocacia brasileira.
A OAB Seccional Mato Grosso precisa escolher: permanecer refém de estruturas excludentes ou liderar a renovação democrática da advocacia mato-grossense.
Nota técnica: Eleições Diretas – Seccionais de Alagoas (AL), Amazonas (AM), Paraíba (PB), Pernambuco (PE), Rio Grande do Norte (RN), Roraima (RR), Santa Catarina (SC), Sergipe (SE). Eleições Híbrida: Seccionais da Bahia (BA), Distrito Federal (DF), Espírito Santo (ES), Maranhão (MA). Eleições Indireta: Acre (AC), Amapá (AP), Ceará (CE), Goiás (GO), Mato Grosso (MT), Mato Grosso do Sul (MS), Minas Gerais (MG), Pará (PA), Paraná (PR), Piauí (PI), Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Sul (RS), Rondônia (RO), São Paulo (SP) e Tocantins (TO)
Adriane do Nascimento é Advogada. Especialista em Direito Societário, Direito do Trabalho e Direito Tributário. Mestra em Economia, Políticas Públicas e Desenvolvimento pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília/DF. Registrada no Conselho Regional de Economia sob o nº 0001/MT. Premiada no Prêmio Brasil de Economia – 2023, na categoria Artigo Técnico-Científico, no XXV Congresso Brasileiro de Economia realizado pelo Conselho Federal de Economia (Cofecon). Consultora da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB (CFOAB) – Gestão 2022/2024. Atualmente, é Doutoranda em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília/DF.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 jul. 1994.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL SERGIPE (OAB/SE). Relatório da Comissão Especial sobre o modelo de escolha da lista sêxtupla para o Quinto Constitucional. Aracaju: OAB/SE, 13 dez. 2024. 21 p.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO BAHIA (OAB-BA). OAB Bahia aprimora eleição direta para lista sêxtupla do Quinto Constitucional com medida para reduzir risco de abuso de poder econômico. Salvador: OAB-BA, 13 dez. 2024. Disponível em: https://www.oab-ba.org.br/. Acesso em: 10 jul. 2025.
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PINHEIRO, Karla. Quinto Constitucional: estudo da comissão especial atesta que eleições híbridas são mais justas e igualitárias. Aracaju: OAB/SE, 21 dez. 2024. Disponível em: https://www.oabse.org.br/. Acesso em: 10 jul. 2025.