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Cuiabá, 23 de Novembro de 2025

Opinião Quarta-feira, 17 de Setembro de 2025, 13:27 - A | A

Quarta-feira, 17 de Setembro de 2025, 13h:27 - A | A

LORENA LARRANHAGAS

O paradoxo da essencialidade do dinheiro na Recuperação Judicial

Como o dinheiro, motor de qualquer atividade econômica, não é considerado essencial no processo de recuperação judicial?

A questão, que à primeira vista parece retórica, revela uma das maiores incoerências entre a dogmática jurídica e a realidade contábil.

O art. 49, §3º, da Lei 11.101/2005 assegura que bens de capital essenciais à atividade empresarial não podem ser retirados da posse do devedor durante o stay period. A jurisprudência do STJ consolidou a interpretação de que apenas ativos corpóreos, diretamente vinculados ao processo produtivo, máquinas, veículos, imóveis de uso operacional, se enquadram nesse conceito. O numerário em caixa, por sua natureza fungível, ficou de fora.

O raciocínio jurídico parece lógico: dinheiro pode ser substituído, não é materialmente indispensável, e sua apreensão não comprometeria a continuidade da atividade empresarial se houvesse outras fontes de liquidez. Porém, a análise contábil desmonta essa construção.

O dinheiro não é apenas um ativo fungível; é o elo que conecta patrimônio e produção. Sem liquidez mínima, a máquina essencial não funciona, o imóvel não se mantém e os trabalhadores não recebem salários.

Na contabilidade, o fluxo de caixa projetado é o coração da viabilidade econômico-financeira. É nele que se demonstram as entradas e saídas necessárias para manter a operação ativa e honrar compromissos com credores. O capital de giro representa a engrenagem que sustenta a continuidade, garantindo a compra de insumos, o pagamento de tributos correntes, a energia elétrica que alimenta a produção e até a manutenção dos próprios bens protegidos pela lei. Em termos práticos, o numerário é tão ou mais essencial que o ativo fixo.

A contradição se torna evidente quando se observa a prática judicial.

Ao mesmo tempo em que se preserva a integridade formal das máquinas e equipamentos, admite-se o bloqueio de valores que custeiam a folha de pagamento ou a aquisição de matéria-prima. A empresa, sufocada financeiramente, mantém seus bens de capital intactos, mas perde a capacidade de operação. O resultado é um paradoxo: a lei garante a preservação daquilo que, sem caixa, se transforma em mero ativo ocioso.

A essencialidade, vista sob a ótica econômica, não se limita à corporeidade do bem, mas à sua função de manter a empresa como “going concern” (expressão contábil que significa a presunção de continuidade da atividade empresarial). Em outras palavras, trata-se da capacidade de a empresa seguir viva, operando e honrando compromissos no futuro previsível.

O dinheiro, ainda que fungível, cumpre papel insubstituível: viabilizar a utilização de todos os outros ativos. Ignorá-lo é como proteger o corpo e privar o organismo do oxigênio que o mantém vivo.

Caminhos para superar esse impasse passam pela releitura do conceito de bem de capital essencial. Uma interpretação teleológica da LRF poderia, ao menos, assegurar a proteção de um numerário mínimo necessário à continuidade operacional, à semelhança do “mínimo existencial” reconhecido em outros ramos do direito. Alternativamente, a vinculação da preservação do caixa às projeções do fluxo de caixa no plano de recuperação poderia oferecer um critério objetivo, alinhando prática contábil e segurança jurídica.

Afinal, se a finalidade maior da recuperação judicial é preservar atividades viáveis, empregos e riqueza, não faz sentido ignorar que a liquidez imediata é condição indispensável para que qualquer ativo essencial cumpra sua função.

Talvez seja o momento de o direito abandonar a leitura estática e patrimonialista e adotar uma visão mais dinâmica, capaz de reconhecer no dinheiro não apenas um ativo fungível, mas o verdadeiro combustível da empresa em crise.

Lorena Larranhagas é advogada, administradora judicial, professora, e mediadora. É membra da Comissão de Estudos da Lei de Falência e Recuperação de Empresa da OAB/MT e OAB/SP, da Comissão Especial da Advocacia Empresarial e da Comissão do Agronegócio da OAB/SP, além de ser membra do Instituto Brasileiro da Insolvência (IBAJUD), do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR) e do International Women's Insolvency & Restructuring Confederation (IWIRC).