O conceito de justiça é abstrato em demasia — o que fica claro na ausência de consenso até mesmo entre os filósofos que de há muito sobre ele discorreram. Por isso, não se busca, aqui, trabalhar o conteúdo material da palavra inaugural do presente texto.
Pode-se, talvez e com o escopo meramente metodológico, estabelecer como pressuposto mínimo de realização da justiça o cumprimento da Lei — não em sentido literal, típico de um positivismo descolado das complexidades que a interpretação judicial encerra —, hermeticamente orientado à realização do bem comum, tendo como enfoque o enaltecimento da dignidade da pessoa humana, a funcionar como vetor inafastável do Estado Constitucional e Democrático de Direito.
Nessa ambiência, pode-se dizer, o aparado judicial busca, em sua mais sublime atuação, por qualquer ótica que se possa vislumbrar, a concretização da “almejada justiça”, a qual se materializa, em princípio, com o zeloso ato de decidir.
O papel do advogado, nessa empresa quase que metafísica, é de expressa e constitucional indispensabilidade. Aqui, aliás, há de fazer-se uma sucinta, mas mandatória, observação: o advogado não é indispensável à administração da justiça, como muitos fundamentam, de forma automática e com apoucada reflexão, porque está na Constituição. Essa leitura é rasa e não compreende a relevância do ofício. A ordem da afirmação é inversa: o advogado está na Constituição dado que é indispensável à administração da justiça. O exercício de valoração, nesse aspecto, precede à elaboração da norma. A indispensabilidade do advogado é “pré-normativa”, ou fática, sendo que a normatividade apenas a reconhece.
Feita a sucinta observação pertinente à superlativa indispensabilidade da advocacia na administração da justiça, cabe pontuar, também de forma singela, que a gestão, a gerência ou, em última análise, a materialização da justiça em si, ao menos juridicamente, expressa-se, de fato e de direito, no provimento jurisdicional, cuja chancela é a assinatura de um juiz, membro do Poder Judiciário, quando no exercício de singular função, qual seja, a de julgar.
Julgar, a propósito, é tarefa difícil, árdua, solitária e, sobretudo, complexa – quase ao ponto de ser, também, “sobre-humana”. Sem um juiz comprometido, a lei de nada serve; nada garante. A lei, sem um juiz, não assegura nem mesmo a sua própria eficácia, o respeito a si própria. Nessa conjuntura, se a Lei, sem juiz, não garante sequer a si mesma, como esperar dela a garantia do direito — sempre alheio — que visa resguardar?
Como, de forma magistral, observara Calamandrei, “quando o direito está ameaçado e oprimido, desce do mundo astral, onde descansara no estado de hipótese, e espalha-se pelo mundo dos sentidos. Encarna-se, então, no juiz e torna-se a expressão concreta de uma vontade operante por intermédio da sua palavra”.
Ainda de acordo com a precisa síntese do processualista italiano, ao ressaltar a relevância do magistrado:
O juiz é o direito tornado homem. Na vida prática, só desse homem posso esperar a proteção prometida pela lei sob uma forma abstrata. Só se esse homem souber pronunciar a meu favor a palavra de justiça, poderei certificar-me de que o direito não é uma sombra vã. Por isso se coloca o verdadeiro fundamentum regnorum não apenas no jus, mas também na justitia. Se o juiz não tem cuidado, a voz do direito é evanescente e longínqua como a voz inatingível dos sonhos.
Esse cuidado, de há muito observado por Calamandrei, tem ganhado relevo presentemente, sobretudo em meio ao caos tecnológico em que todos estão envoltos. A quantidade de processos, acrescida das sensações típicas da sociedade pós-moderna, potencializadas pela catástrofe mundial da pandemia, tem contribuído sobremaneira para um caminho de (mais) abstrativização da vida alheia, no qual tudo parece consubstanciar-se em metas, números, gráficos.
O cuidado do juiz, imprescindível para que a voz do direito não se torne, como advertiu Calamandrei, evanescente e longínqua como a voz inatingível dos sonhos, tem sido reclamado por aqueles que veem seus processos serem julgados por magistrados no trânsito, “julgando ao celular”.
Poder-se-ia crer num absurdo desses, quando se pensava — e se esperava — que a tecnologia aprimoraria a prestação da tutela jurisdicional?
O cenário é decadente.
A justiça, que já era abstrata, agora parece ficar ainda mais distante. Afora “a motivação boa” de Galeano, ao descrever a utopia como mecanismo de fomento ao incessante caminhar, parece que quando se dão dez passos em direção à justiça, ela se afasta pelo menos dez passos de quem por ela clama.
Outro dia, destaca-se apenas à guisa de ilustração, julgou-se um caso com a cabeça envolta em “papel”, enquanto se faziam as sobrancelhas ; mesmo que em tempo cuja finalidade deveria ser exclusivamente direcionada à complexa função de julgar, após uma “ponderação de valores”, decidiu-se que o embelezamento não poderia ceder à prestação da tutela jurisdicional. A sadia atitude de cuidar-se de si próprio, ainda que em horário de “trabalho”, recebeu idêntico “valor” ao da função jurisdicional, tendo essa de, num mesmo espaço cronológico e geográfico, convier com aquela.
Enquanto o advogado que fez a sustentação oral sem o adereço “gravata” é exortado em tempo real e a nível mundial — já que as sustentações estão disponibilizadas em sítios virtuais —, alguns julgadores (que não representam, é verdade, a maioria do Poder Judiciário) condenam pessoas, despejam cidadãos ao tempo que suas sobrancelhas são feitas no aconchego de um salão de beleza (ou clínica de estética) . E o pior: sem a mascara de proteção.
Haverá, certamente, quem pense que erro da juíza de segundo grau, no supracitado caso, foi não ter feito o uso da máscara. A maior censurabidade da conduta, no entanto, deveria ser, ao menos em tese, o pouco caso no desempenho da atividade Estatal por meio da qual aquela abstrata justiça tenta fazer-se concreta.
A justiça é como a utopia, porém “piorada” em tempos de pandemia: dão-se dez passos em direção a ela, e ela se afasta dez passos, vezes dez, até sumir de vista no caminho que não tem fim e no qual muitos caminham a vida toda sem ver, nem mesmo de longe, os indicativos de existência desse sonho chamado justiça.
O que fazer? O que esperar?
É gritar? Ou calar?
É sentar e chorar?
É resistir!
Filipe Maia Broeto é Advogado criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Mestrando em Direito Penal (UBA/ARG) e Especialista em Direito Penal Econômico (PUC/MG), Ciências Penais (UCAM/RJ) e Processo Penal (COIMBRA/IBCCRIM). Autor de livros e artigos jurídicos, publicados no Brasil e no exterior.
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