“O silêncio não pode mais ser cúmplice da violência. E o depoimento especial é a escuta que acolhe, protege e transforma”. A fala é do juiz Flávio Schmidt, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), autor do livro Lei do Depoimento Especial Anotada e Interpretada. Neste dia 18 de maio, é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Definido pela Lei n. 13.431/2017, o depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária. Servidores da Justiça capacitados conversam reservadamente com as crianças e os adolescentes em um ambiente lúdico. A conversa é gravada e assistida ao vivo, na sala de audiência, pelo juiz e as demais partes do processo. O objetivo é evitar a revitimização de crianças e adolescentes que sofreram ou testemunharam casos de violência.
É garantido a eles o direito ao silêncio e a não prestar depoimento, esclarecendo-o de maneira adequada ao seu desenvolvimento. O depoimento deve seguir protocolo validado cientificamente, assegurando esclarecimentos iniciais, livre narrativa e questões complementares. O método também é aplicado em casos de violência física e psicológica, alienação parental e negligência.
História
O depoimento especial foi idealizado pelo desembargador José Antônio Daltoé Cezar, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), quando era juiz da Infância e Juventude de Porto Alegre em 2003. Segundo ele, o modelo antigo, no qual a criança ou adolescente era ouvida na sala de audiência na frente de juiz, promotor, advogados e testemunhas, não funcionava, pois ela ficava inibida. Assim, quase nenhum criminoso ou infrator era responsabilizado, já que, geralmente, o abuso sexual não deixa provas.
Assim, o magistrado montou uma sala de audiência para elas serem ouvidas apenas com a presença de uma psicóloga. Ele teve a ideia de utilizar câmeras de vigilância residenciais, que não eram comuns na época, e microfone para começar a aplicar o novo método. A ideia acabou se espalhando para outros tribunais e originou a lei de 2017.
O desembargador conta que o projeto teve e ainda tem resistências. Apesar disso, os resultados vieram. Hoje são 1.674 salas nos 27 estados, com 5.673 técnicos e mais de 5 mil juízes capacitados. Houve mais de 102 mil depoimentos de 2019 a 2023, sendo que até 2022 oito estados não contabilizaram as oitivas e, em 2023, três não informaram os dados.
Dignidade
Para Flávio Schmidt, a data é um chamado à ação concreta e efetiva na proteção da infância e juventude brasileira. “A mudança é profunda: a partir da escuta especializada e do depoimento especial, a criança passa a ser verdadeiramente reconhecida como sujeito de direitos, com o devido respeito à sua dignidade, à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e à sua vulnerabilidade frente à violência”, afirma.
A escuta especializada é a entrevista com uma possível vítima de violência infanto-juvenil em instituições da rede de promoção e proteção (escola, hospital, conselhos tutelares, serviços de assistência social). “Antes da lei, os relatos infantis muitas vezes eram tratados como meros meios de prova, com repetidas inquirições, por vezes em ambientes inapropriados e por profissionais despreparados, gerando revitimização e violência institucional”, afirma o juiz.
Segundo ele, com a nova legislação, o Brasil rompeu com esse ciclo, pois a escuta passou a ser realizada de forma técnica, com ambiente acolhedor, profissionais qualificados e com o protagonismo da criança ou adolescente. “Isso tem ampliado as denúncias, rompendo o ciclo de subnotificação que, durante décadas, silenciou muitas histórias de sofrimento”, aponta.
Desafios
Na avaliação do magistrado, o maior desafio é a efetivação da implantação da lei e da Resolução CNJ n. 299/2019, a qual determinou que todos os tribunais de justiça dos estados cumpram as diretrizes do Pacto Nacional pela Escuta Protegida, o que inclui a criação de salas adequadas, capacitação de magistrados e servidores e o fortalecimento das redes locais de proteção.
Outras medidas apontadas por Flávio Schmidt são: capacitação continuada e integrada de todos os profissionais que atuam nos sistemas de garantia de direitos; fortalecimento da rede interinstitucional, com criação e consolidação de fluxos de atendimento entre os órgãos; e expansão e manutenção das salas de escuta protegida, com garantia orçamentária e apoio técnico para municípios e comarcas que ainda não dispõem da estrutura mínima necessária.
Para José Antônio Daltoé Cezar, a legislação brasileira sobre o assunto é uma das melhores do mundo. “A lei criou uma cultura. Hoje, conselhos tutelares, polícia e outros agentes da rede de proteção sabem que cada um tem um trabalho a realizar. O abuso sexual de crianças e adolescentes é uma pandemia silenciosa”, lamenta.
Ações do CNJ
Em 2021, o CNJ lançou o Manual Prático para Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais. O objetivo é adaptar as normas da escuta protegida, de forma a garantir a proteção de vítimas e testemunhas de violência de origem quilombola, indígena, cigana ou outros povos. Em setembro de 2024, o Conselho aprovou o protocolo para o depoimento especial de crianças e adolescentes nas ações de família em que se discuta alienação parental. (Com informações da Assessoria de Imprensa CNJ)