A discussão sobre a função social da propriedade rural costuma ficar presa ao vocabulário da política agrária.
No entanto, ela ganha contornos práticos quando olhamos para a insolvência. Se a produção para, a terra falha no que a Constituição exige: produtividade, cuidado ambiental e impacto social.
O tema deixa de ser abstrato e se torna operacional, na medida em que nos perguntamos quais instrumentos evitam que uma unidade produtiva seja desmontada antes de se reorganizar.
A recuperação judicial é um desses instrumentos. Não porque “salva” devedores, mas porque cria um corredor de negociação coletiva capaz de sustentar a continuidade da atividade. O stay, o plano votado por credores e os ajustes operacionais dão ao produtor rural fôlego para reequilibrar safra, recompor capital de giro e reordenar passivos com tradings, fornecedores e instituições financeiras. Manter a roda girando significa preservar empregos, serviços ambientais e abastecimento, efeitos típicos da própria função social.
No campo, a crise raramente nasce de um único erro de gestão. Oscilação de preços, quebra climática, crédito mais caro e má orientação contratual empurram a operação para a margem. Quando cada credor tenta receber sozinho, a execução pulveriza máquinas, retalha estoque, desarticula arrendamentos e degrada silenciosamente a produtividade da terra. A recuperação muda o vetor, substituindo a corrida individual por um arranjo coletivo, com transparência e governança sob supervisão judicial.
Isso não transforma a recuperação em escudo automático. O instituto exige contrapartidas como demonstração de viabilidade, metas de produção, cronograma realista de pagamento, observância ambiental e trabalhista. Um plano que apenas difere dívidas, sem atacar gargalos de custo, logística e produtividade, não merece aprovação. A função social se protege pelo cumprimento da Constituição e não pelo discurso.
Há uma particularidade do produtor rural empresário individual. Patrimônio e atividade se entrelaçam. Fazenda, bens de capital e contratos formam um bloco econômico que, se preservado, mantém a terra útil. Se dilapidado, converte propriedade em ativo ocioso. Ao submeter esse conjunto à lógica coletiva da recuperação, o sistema jurídico prioriza a continuidade eficiente e não a liquidação apressada.
Esse debate se fortalece quando lembramos que o Estatuto da Terra, de 1964, já estabelecia que a propriedade só cumpre sua função social quando utilizada de forma racional, produtiva e voltada à justa distribuição dos frutos.
A terra, portanto, é reconhecida como bem essencial para a ordem econômica e social. O que não se vê, contudo, é a mesma proteção alcançando os produtos dela extraídos. Grãos e safras, que são a expressão concreta da atividade, continuam tratados na recuperação judicial como meros acessórios sujeitos à constrição, sem o status de bem essencial que a lógica constitucional sugeriria. Se a terra só realiza sua função social quando produz, surge a indagação sobre os frutos. Não seriam eles parte do mesmo núcleo de essencialidade que legitima a proteção da propriedade? A resposta ainda não está consolidada, mas o questionamento é inevitável.
Na prática forense, a recuperação já demonstra efeitos concretos. Acordos estruturados, revisão de garantias desproporcionais, alongamento de prazos, troca de indexadores, venda de ativos não essenciais e até aporte de capital novo não representam favores ao devedor, mas técnicas de preservação de valor. E o valor, no meio rural, também significa manter a terra produzindo.
É claro que há limites. Se a atividade é inviável, insistir na recuperação apenas transfere custos ao sistema e alimenta expectativas falsas. Por isso, diagnóstico consistente, projeções conservadoras e governança minimamente profissional são condições indispensáveis. Quando presentes, a recuperação judicial não compete com a política agrária. Pelo contrário, complementa-a, evitando que a execução individual transforme terras produtivas em passivos sociais e ambientais.
Em síntese, no ambiente rural, preservar a empresa é preservar a função social da propriedade. Insolvência bem conduzida não romantiza devedores. Organiza interesses, reduz perdas coletivas e assegura que a terra continue cumprindo sua função social de forma responsável.
Lorena Larranhagas é advogada, administradora judicial, professora, e mediadora. É membra da Comissão de Estudos da Lei de Falência e Recuperação de Empresa da OAB/MT e OAB/SP, da Comissão Especial da Advocacia Empresarial e da Comissão do Agronegócio da OAB/SP, além de ser membra do Instituto Brasileiro da Insolvência (IBAJUD), do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR) e do International Women's Insolvency & Restructuring Confederation (IWIRC).






