Nos últimos anos, uma transformação vem ganhando corpo no agronegócio brasileiro: o avanço consistente dos pedidos de recuperação judicial por parte de produtores rurais.
Somente no primeiro trimestre de 2025, foram registrados 389 pedidos no setor, segundo a Serasa Experian, um aumento de 21,5% em relação ao trimestre anterior e de 44,6% na comparação com o mesmo período de 2024.
Esse crescimento expressivo não pode ser lido de forma apressada. A maioria desses pedidos parte de produtores pessoa física, 195 no primeiro trimestre de 2025, com alta de 83,9% em relação ao ano anterior. Ao lado deles, empresas ligadas ao agronegócio, como agroindústrias e comercializadoras, também elevam as estatísticas.
Os dados indicam um setor tensionado por riscos climáticos, alta de custos e uma crise de liquidez que afeta inclusive os arrendatários e pequenos produtores com acesso limitado a crédito estruturado.
Apesar desse cenário, persiste uma narrativa resistente, e muitas vezes equivocada, que trata o produtor em recuperação judicial como figura hostil ao mercado. Como se a judicialização da crise fosse uma ruptura deliberada com os compromissos assumidos, e não um último recurso diante da ausência de canais extrajudiciais eficazes.
É preciso abandonar esse enquadramento simplista. A recuperação judicial é, por definição, uma ferramenta de reorganização prevista em lei. Quando utilizada com responsabilidade, busca preservar a atividade produtiva, manter empregos e permitir que o produtor continue operando, mesmo em um ambiente cada vez mais volátil e incerto. Trata-se de uma tentativa de travessia, não de evasão.
O problema, portanto, não está na escolha pelo instituto, mas na precariedade institucional do ecossistema que o cerca. Credores retraem-se, especialmente instituições financeiras e tradings, tratando a recuperação como um ato unilateral. O Estado permanece ausente, sem políticas públicas coordenadas de renegociação do crédito rural, sem estruturas de mediação e sem articulação técnica entre os entes envolvidos. Ao Judiciário, resta arbitrar uma crise que é antes de tudo econômica, setorial e sistêmica.
A isso se soma uma dinâmica litigiosa cada vez mais acirrada. Profissionais que atuam na assessoria de produtores, advogados, consultores, gestores, frequentemente adotam posturas fragmentadas e defensivas, mais voltadas à proteção isolada de interesses do que à construção de soluções integradas. Faltam, ainda, iniciativas institucionais que incentivem perfis técnicos com capacidade de articulação setorial, visão sistêmica e compromisso com a sustentabilidade do agronegócio como cadeia produtiva, e não como um conjunto de litígios individuais.
Diante desse cenário, é urgente a formação de um novo pacto institucional entre produtores, credores e o Estado. Um pacto que reconheça o produtor em crise como um agente econômico legítimo, que respeite a recuperação judicial como mecanismo de reestruturação, não de exclusão, e que viabilize soluções pré-processuais estruturadas, como mediações especializadas, câmaras setoriais e ferramentas coletivas de negociação.
É igualmente necessário rever o modelo de financiamento da atividade rural. A inadimplência entre produtores pessoa física alcançou 7,9% no primeiro trimestre de 2025, refletindo o esgotamento de um sistema que exige garantias desproporcionais, opera com contratos de adesão e raramente incorpora a imprevisibilidade do ciclo produtivo. Preservar o crédito rural exige ir além de renegociações pontuais, exige uma reforma estrutural da maneira como o risco agrícola é financiado no Brasil.
Não se trata de premiar a inadimplência, mas de reconhecer os limites de um modelo que naturalizou a informalidade, a concentração de crédito e a judicialização tardia.
Se a recuperação judicial passou a ocupar espaço central na reorganização do setor, é porque faltaram pontes institucionais antes dela. E porque, em muitos casos, ela é o único instrumento disponível para proteger o ativo mais valioso do campo: a continuidade da produção.
A crise não é jurídica. Ela é estrutural, e exige respostas que transcendem o processo. O uso da recuperação judicial por produtores rurais não é para ser “combatido”, mas compreendido. A alternativa é perpetuar um sistema de exclusão que desorganiza a cadeia produtiva, compromete o crédito e desgasta a confiança entre os agentes econômicos.
A RJ, quando bem manejada, não rompe. Ela reconecta. É ponte entre um passado de excessos e um futuro possível. Mas, para cumprir essa função, precisa de firmeza dos dois lados: do produtor, que precisa assumir o compromisso da reestruturação com transparência; e de um sistema que saiba escutá-lo, ampará-lo e enxergar na recuperação judicial não uma falha, mas uma tentativa legítima de continuidade.
Lorena Larranhagas é administradora judicial, mediadora e advogada. É membra da Comissão de Estudos da Lei de Falência e Recuperação de Empresa da OAB/MT e OAB/SP, da Comissão Especial da Advocacia Empresarial e da Comissão do Agronegócio da OAB/SP, além de ser membra do Instituto Brasileiro da Insolvência (IBAJUD), do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR) e do International Women's Insolvency & Restructuring Confederation (IWIRC).