facebook instagram
Cuiabá, 11 de Outubro de 2024
logo
11 de Outubro de 2024

Opinião Terça-feira, 07 de Abril de 2020, 10:19 - A | A

07 de Abril de 2020, 10h:19 - A | A

Opinião /

Nas ações de improbidade administrativa, os delatados também devem falar por último

O processo de improbidade administrativa que contar com o instituto da colaboração premiada deverá, obrigatoriamente, socorrer-se da legislação penal para que possa se desenvolver válida e legitimamente



Sancionada em 24 de dezembro de 2019, a Lei 13.964, intitulada “Pacote Anticrime”, promoveu uma verdadeira reforma na legislação penal e processual penal, alterando paradigmas substanciais, tanto do ponto de vista processual (Código de Processo Penal) quanto “material” (Código Penal e Legislação Penal Extravagante). 

Para além das modificações – importantes – no campo penal e processual penal, o “Pacote Anticrime” deu clara mensagem de que a improbidade administrativa, que faz parte do chamado direito administrativo sancionador, guarda insofismável similitude com o ramo sancionatório penal.

Tal mensagem do legislador fica clara, a mais não poder, no artigo 17, §1º, da Lei 8.429/92, que, por força da Lei 13.964/2019, passou a aceitar, no campo do direito administrativo sancionador, os chamados “acordos premiais” –– os quais eram expressamente vedados ––, em nítida aproximação com o processo penal contemporâneo, o qual vem amplificando o espectro da justiça consensual.  

Aliás, como já alertava FLÁVIO EDUARDO TURESSI, em sua obra “Justiça Penal Negociada e Criminalidade Macroeconômica Organizada: o papel da política criminal na construção global do direito penal”, lançada pouco tempo antes da modificação legislativa efetivada pelo “Pacote Anticrime”:

[...] não se pode ignorar que, ampliada a via negocial para a resolução de conflitos na esfera penal, sobretudo com a previsão do instituto da colaboração premiada na Lei 12.850/2013, é preciso entender que, sendo a ilicitude a relação de contrariedade entre a conduta e o próprio Direito como um todo, mostra-se contraditória e incongruente a possibilidade da composição do ilícito penal pela via negocial e, de maneira diversa, sua proibição na esfera cível, máxime quando decorrentes de uma única conduta, de um só proceder. 

Diante desse cenário, em que a doutrina pátria anunciava a necessidade de comunicabilidade entre as esferas penal e administrativa - - - , em se tratando de processos colaboracionais, o legislador houve por bem alterar, de forma totalmente inovadora, o único óbice legislativo que inviabilizava a celebração de pactos no campo da improbidade administrativa.

Se, antes, o §1º, do artigo 17, da Lei 8.429/92, dizia ser “vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput”, agora, o dispositivo ganha conteúdo diverso e passa a dispor, expressa e inequivocamente, que “[a]s ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei”.

Ou seja, assemelham-se, nesse ponto, o processo penal e o processo administrativo sancionador, na linha do que já temos defendido há algum tempo  e que vem sendo aceito pela maior parte da doutrina e pela jurisprudencia majoritária. 

A razão parece óbvia: a ação de improbidade administrativa, regulada pela Lei nº 8.429/92, possui insofismavelmente nítidos reflexos punitivos - , o que não só autoriza, mas impõe a aplicação, por simetria, das normas de Direito Processual Penal, sobretudo no tocante à necessária observância de direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição. 

Portanto, parece-nos óbvio que o regramento processual da improbidade administrativa há de reger-se à semelhança dos casos penais, dado o caráter “quase-penal”  das sanções aplicáveis nesta seara do direito sancionatório, como salientavam Gilmar Ferreira Mendes e Arnold Wald, já nos primórdios da Lei nº 8.429/92. 

Diante desse cenário, em que se admite –– agora no plano legislado –– a proximidade ontológica de ambos os ramos do direito público, nos quais as mais drásticas sanções são impostas pelo Estado aos demandados, deve-se, até mesmo por coerência, compatibilizar o tanto quanto possível os direitos e garantias fundamentais.

Há de ter-se em mente, entretanto, que, malgrado o artigo 17, §1º, da Lei 8.429/92, tenha passado a admitir a celebração de acordos premiais no campo do processo administrativo sancionador, a retrocitada legislação carece de balizas e diretrizes necessárias à asseguração do devido processo legal nessa nova modalidade de “processo administrativo sancionatório colaboracional”. 

Por essa razão, entendemos que o processo de improbidade administrativa que contar com o instituto da colaboração premiada deverá, obrigatoriamente, socorrer-se da legislação penal para que possa se desenvolver válida e legitimamente, buscando preenchimento sobretudo na Lei de Organizações Criminosas, que bem trata do instituto da colaboração premiada. 

Nesse novo contexto legislativo, parece que uma das questões que merecem acentuada atenção é a nova regra, também recentemente introduzida na Lei 12.850/2013, segundo a qual “[e]m todas as fases do processo, deve-se garantir ao réu delatado a oportunidade de manifestar-se após o decurso do prazo concedido ao réu que o delatou”. 

Se a inovação legislativa no campo da improbidade teve influxo do processo penal, o mais sensato é que, na falta de regramento específico na seara administrativo-sancionadora, se busquem mecanismos processuais penais, de modo a evitar quaisquer atropelos a direitos e garantias fundamentais. 

Logo, malgrado a Lei 13.964, de 2019, tenha sido positiva ao assegurar o direito do delatado de falar por último, o que certamente se deu após o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do agravo interposto na ordem de habeas corpus n. º 157.627, o legislador olvidou-se de regulamentar a situação jurídica do “delatado” na seara do processo administrativo sancionador. 

Encontramo-nos, pois, diante de uma “lacuna” na Lei 8.492/92, que diz respeito à (des)necessidade de o réu delatado manifestar-se após os delatores. 

A questão, ao que nos parece, não comporta maiores controvérsias, sendo de rigor a aplicação analógica do disposto no artigo 4º, §10-A, da Lei 12.850/2013, aos processos de improbidade administrativa nos quais forem formulados acordos premiais. 

Tal qual ocorre no processo penal, dever-se-á assegurar aos delatados na improbidade o “direito ao confronto” , que haverá de materializar-se em juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. Ademais, há de superar-se a máxima, já ultrapassada, “de que el contradictorio no es más que el derecho a la información con la facultad de manifestación posterior”. 

Deveras, como falar-se em direito ao confronto e, em consequência, em respeito ao contraditório e à ampla defesa, se o colaborador (que também é parte interessada no resultado da causa de improbidade ) apresenta provas ou versões sobre as quais os delatados não puderam se manifestar? 

Como dizer que houve contraditório pleno, “efetivo e equilibrado”, por exemplo, se se obrigou “delatores” e “delatados” a apresentarem conjuntamente a defesa preliminar (art. 17, §7º, da Lei 8.429/92)? 

De que maneira poderá o delatado, na improbidade, sustentar a necessidade de juízo de admissibilidade negativo, em face da manifesta improcedência da ação ––quando amparada em colaboração premiada ––, se sequer teve o direito de conhecer na íntegra, e com tempo razoável, sua consistência e amplitude?

Mais: dado que vigora, nesta seara do direito –– em razão a aplicação subsidiária dos artigos 341 e 342, do CPC ––, o ônus da impugnação especificada, como poderá o delatado rebater ponto a ponto as imputações que lhe foram direcionadas, se teve de manifestar-se em conjunto (quiçá ao depois) daquele que, mantendo interesse no resultado processo, falou por último, em violação patente do contraditório substancial?

Como bem observa Orlando Perri, Desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, em contexto que, a nosso ver, se aplica à perfeição às ações de improbidade administrativa, “à defesa haverá de caber, sempre e sempre e em qualquer circunstância, a palavra final, como efeito mágico do verbo”.  

Por todos esses motivos, defendemos que, tanto no processo penal quanto no direito administrativo sancionador, cujos vetores processuais hão de encontrar correspondência naquele, deve-se dar prevalência ao contraditório “efetivo e equilibrado” , o qual viabiliza, na dicção de Gustavo Badaró, real e igualitária participação dos sujeitos processuais ao longo de todo o processo (seja penal ou administrativo-sancionador), assegurando-se, sempre e sempre, a efetividade e a plenitude do contraditório. 

Segundo entendemos, amparados nas lições de Badaró, “esta contradicción efectiva y equilibrada ya no se satisface con la mera posibilidad de reacción. Es necesario estimular y buscar la realización de la reacción para que la estructura dialéctica del proceso se mejore a través de tesis y antítesis con contenido e intensidad equivalentes, alcanzando una síntesis que, basada en premisas simétricas, sea más justa”. -  

Assim, não há como negar-se que “una participación equitativa solo es posible cuando al acusado se le garantiza el derecho a rechazar todos los cargos imputativos que se le atribuyen” , dando-se-lhe, sempre, o direito de falar por último.  

À vista destes fundamentos, concluímos que a similitude ontológica entre o direito administrativo sancionador e o processo penal é justificativa mais que bastante para a aplicação analógica do disposto no artigo 4º, §10-A, da Lei 12.850/2013, a todo e qualquer processo de improbidade administrativa que contenha acordos premiais, garantindo-se, assim, aos delatados, mesmo nesta esfera de responsabilização, o direito de se manifestarem por último, sob pena de nulidade absoluta do processo, por violação ao contraditório efetivo e equilibrado.

Fixada essa premissa, caberá ao juízo processante, antes de notificar as partes para apresentarem a defesa inaugural (art. 17, §7º, Lei 8.429/92), verificar a existência de demandados colaboradores, a fim de estabelecer a ordem de manifestação processual. Em sendo constatada, a partir daí, citações e intimações deverão ser feitas de forma escalonada: primeiro, manifesta(m)-se o(s) colaborador(es). Após, o(s) delatado(s). Em audiência de instrução e julgamento, em caso de depoimento pessoal, de igual modo: ouve(m)-se os delatados somente após a oitiva do(s) delator(res).

Destarte, compartilhamos do entendimento segundo o qual:

[...] quando houver no âmbito de ação de improbidade acordo de leniência ou de colaboração já firmado ou que venha a ser firmado no seu curso, deve o juízo, em homenagem aos artigos 9º e 10 do CPC, como questão prejudicial, homologar ou se pronunciar sobre a repercussão do ajuste sobre o feito o quanto antes (decididamente antes da instrução), cooperando assim para que todas as partes tenham orientação sobre como se comportar estrategicamente e sobre seus ônus, deveres e faculdades; adicionalmente, a decisão servirá também para estabelecer a ordem subsequente das manifestações, incluídas defesa preliminar, contestação, instrução probatória e razões finais escritas (sempre com precedência do colaborador/leniente sobre seus corréus).   

Essa conclusão, para além de estar em sintonia com os argumentos empregados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal –– expostos por ocasião do julgamento parcial do agravo interposto na ordem de habeas corpus n. º 157.627, que versou sobre a ordem de apresentação das alegações finais no processo penal ––, encontra respaldo na alteração recente do artigo 4º, §10-A, da Lei 12.850/2013, o qual haverá de ser empregado como elemento de integração (aplicação analógica) aos processos de improbidade administrativa.

Referências

ARAS, Vladimir. Acordos de delação premiada e acordos de leniência. Disponível em: <https://blogdovladirmir.wordpress.com>.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal, 7. ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2019.

DINO, Nicolao. A colaboração Premiada na Improbidade Administrativa: Possibilidade e Repercussão Probatória. In: A prova no enfrentamento à macrocriminalidade. Salvador: JusPODIVM, 2015. p. 455-459. 

MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinicius. Crime Organizado. São Paulo: Método, 2015. p. 152-155. 

MELO, Valber; NUNES, Filipe Maia Broeto. Colaboração Premiada: aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 102-108. MELO, Valber; NUNES, Filipe Maia Broeto. O pacote "anticrime" e seus impactos na colaboração premiada. Revista Consultor Jurídico – CONJUR. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-dez-29/pacote-anticrime-impactos-colaboracao-premiada>. Acesso em 30 mar. 20 

MENDES, Gilmar Ferreira; WALD, Arnoldo. Competência para julgar ação de improbidade administrativa. In: Revista de Informação Legislativa, v.35, n.138, abr./jun. 1998, p. 215.

MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Pupe da. As posições processuais de delatores e delatados em ações de improbidade. Revista Consultor Jurídico – CONJUR. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-nov-04/opiniao-posicao-delatores-delatados-acoes-improbidade>. Acesso em 31 mar. 20. 

NUNES, Filipe Maia Broeto. A necessidade da individualização das condutas nas ações de improbidade administrava como garantia constitucional do demandado: uma análise interdisciplinar entre direito penal, processual penal e direito administrativo sancionador. Revista dos tribunais, vol. 109, n. 1012 (fev. 2020). 

NUNES, Filipe Maia Broeto. El derecho del acusado a hablar a más tardar en el proceso penal colaborativo brasileño: una ponderación de valores entre los principios de contradicción y legalidad a la luz de Dworkin. Revista Pensamiento Penal (ISSN: 1853- 4554), Buenos Aires, Argentina. Disponível em: http://www.pensamientopenal.com.ar/doctrina/48608-derecho-del-acusado-hablar-mas-tardar-proceso-penal-colaborativo-brasileno. 

NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber. A (im)possibilidade de impugnação de acordo de colaboração premiada por terceiros: uma breve distinção entre impugnação e direito ao confronto sob a ótica dos tribunais superiores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5378, 23 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64905. Acesso em: 30 mar. 2020.

NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber. Da (in)aplicabilidade do foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5214, 10 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60621. Acesso em: 30 mar. 2020.

PERRI, Orlando de Almeida. Havendo sustentação oral, defesa se manifesta sempre em último lugar. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-03/perri-cabe-defesa-ultima-palavra-quando-houver-sustentacao-oral. Acesso em: 28 ago 19.

TURESSI, Flávio Eduardo. Justiça Penal Negociada e Criminalidade Macroeconômica Organizada: o papel da política criminal na construção global do direito penal. Salvador: JusPODIVM, 2019. p. 259.

Valber Melo é Advogado criminalista. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Especialista em Ciências Criminais. Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Penal Econômico. Especialista em Direito Penal Econômico. Professor de Direito Penal e Processual Penal. Autor e coautor de livros e artigos jurídicos, publicados no Brasil.

Filipe Maia Broeto é Advogado criminalista. Professor de Direito Penal. Mestrando em Direito Penal (UBA). Especialista em Ciências Penais (UCAM), Processo Penal (COIMBRA/IBCCRIM) e Direito Público (UCAM). Autor e coator de livros e artigos jurídicos, publicados no Brasil e no exterior.