Ao longo da história, a instituição familiar tem se transformado consideravelmente, se modernizando de acordo com a evolução da sociedade. Atualmente, afeição pelos filhos não só se tornou essencial para o crescimento saudável de um ser humano, como é usado como requisito para reconhecer uma nova espécie de filiação; a socioafetiva, que permite, até mesmo, a inclusão do respectivo ascendente na certidão de nascimento do infante, sem prejuízo a do genitor biológico.
Diante das novas formas de família, eis que desponta a multiparentalidade. Situação que se compreende na existência de mais de um ascendente: dois pais, duas mães, dois pais e duas mães, etc. Onde um comumente terá origem biológica e o outra afetiva. Muitos desses casos terminam por construir laços indestrutíveis, que se originam na convivência contínua, se transformando em filiação sociafetiva.
No que tange aos princípios que regem o direito de família, especificamente a filiação, poderíamos apresentar uma gama deles, todos de extrema relevância, quais se tornam ainda mais necessários quando falamos de filiação afetiva, que é permeada por princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o princípio da solidariedade e afins. Vamos nos ater, no entanto, ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos, previsto no artigo 227, §6º da Constituição Federal de 1988.
A Carta Magna teve o cuidado de assegurar que filhos com origens de parentescos diversas tivessem sua igualdade garantida, evitando que se mantivessem tratamentos discriminatórios com relação à essas pessoas, como era o caso do Código Civil de 1916, que previa várias distinções relativas às espécies de filiação (filhos ilegítimos, legítimos, adulterinos e incestuosos) e direitos inerentes à cada uma delas. Para tanto, em 2002, o novo Código também resguardou o princípio da igualdade entre os filhos, excluindo essas discriminações do nosso ordenamento jurídico.
Ocorre, que a multiparentalidade, resultado de uma sociedade que se modifica rapidamente, traz aspectos distintos para ambas espécies de filiação. A exemplo, estaria o direito à herança. Pois se observado os direitos sucessórios aplicáveis, o indivíduo possuidor de múltiplos pais, possuiria também múltiplas heranças.
Coloca muito bem o Dr. Clayton Rosa de Resende, Juiz de Direito do estado de Minas Gerais, que “se a realidade dele é ter dois pais, porque não ter duas heranças?”. Desta forma entramos no mérito da realidade, do cotidiano e até mesmo dos costumes deste filho, quais são distintos do filho daquela que podemos chamar de “família tradicional”, possuidor de apenas um pai e uma mãe.
Na verdade, multiparentalidade, deve gerar múltiplas heranças, até mesmo com o intuito de garantir a igualdade, qual princípio que pode se conceituar em “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”.
Pode-se afirmar que a multiparentalidade não multiplica apenas vantagens patrimoniais, mas todo direito relacionado à parentalidade, seja em face do ascendente ou do descendente, inclusive o ônus de cuidar dos pais na velhice, por exemplo.
Ao reconhecer a Repercussão Geral nº 622, com o tema “A preponderância da paternidade afetiva sobre a biológica”, a Suprema Corte fixou a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios"(STF, 2016).
Durante a sessão de plenário, falou pelo IBDFAM o Dr. Ricardo Lucas Calderón, que em seu artigo “Princípio da Afetividade no Direito de Família”, acertadamente colocou: “A aproximação com a experiência concreta fez o direito perceber a relevância que era socialmente conferida à afetividade, mesmo com o paralelo avanço de técnicas científicas que favoreciam a descoberta dos vínculos biológicos”.
Para configurar descendência, legalmente não considera-se mais apenas o material genético, como estabelece o próprio Código Civil ao definir “ou outra origem”, para esclarecer que a filiação não será unicamente natural ou civil (art. 1.593 CC). É importante salientar que, bem como o vínculo consanguíneo, uma vez reconhecido o vínculo socioafetivo, esse não será dissolvido por mera disposição das partes.
Evidencia-se, portanto, o direito do ascendente/descendente afetivo à sucessão legítima. Visto que, ao priorizar os entes mais próximos na sucessão por lei, o legislador observou os laços consanguíneos que, em regra, são também os responsáveis pelos laços afetivos e pelo interesse de cuidado que os familiares criam entre si. Presume-se então, que mesmo após sua morte, o autor do patrimônio teria o anseio de assegurar que seus bens pertencessem àqueles aos quais amou e dedicou-se em vida, bem como, que permanecessem em propriedade daqueles que perante a sociedade ele apresentou como família.
O princípio máximo do estado democrático de direito, o princípio da dignidade da pessoa humana, elencado no rol de princípios fundamentais da nossa Constituição, também deve ser observado. Uma vez que estas famílias possuem o direito de se desenvolver, social e afetivamente, como todas as famílias constituídas e tal direito não necessita estar positivado em nenhum dispositivo jurídico, pois é inerente à cada ser humano, resta ao Estado o dever de garanti-lo. Neste caso, impondo igualdade sucessória à todas as espécies de filiação e garantindo a legítima à todas as espécies de filiação.
Outro princípio, que vem sendo discutido com mais recorrência, é o do implícito direito à felicidade, que tem suas origens na Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, proposto pelo próprio Thomas Jefferson, então presidente dos Estados Unidos e trata-se do direito natural de cada homem de buscar a sua felicidade e fazer escolhas que lhe tragam uma maior satisfação pessoal.
No Brasil, este princípio se insere entre os fundamentais, derivando do supramencionado princípio da dignidade da pessoa humana e foi invocado por alguns ministros do STF durante o julgamento da ADPF nº 132, que tratava do tema da união de casais homoafetivos.
Com sensibilidade impressionantemente humana, João Baptista Villela (1979), em seu artigo A desbiologização da paternidade, um dos mais esclarecedores materiais já escritos acerca da socioafetividade, afirmou que: “Note-se, entretanto, que a paternidade, em si mesma, não é um fato da natureza, mas um fato cultural”.
Da mesma forma, a filiação socioafetiva trata-se de escolha e convivência, pois não é uma família que se obriga a partir de seus laços consanguíneos e que só a partir disso se constrói o afeto, mas sim, uma família que já se construiu afetivamente, por opção, mesmo não havendo quaisquer obrigações imposta pelo vínculo genético e portanto deve estar inserida na norma familiar, sem quaisquer resignações discriminatórias.
Andresa Ferreira é advogada.