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Cuiabá, 02 de Maio de 2025

Opinião Quinta-feira, 01 de Maio de 2025, 09:38 - A | A

Quinta-feira, 01 de Maio de 2025, 09h:38 - A | A

FABIANO RABANEDA E MICHELLE BORRALHO

Código de Vestimentas nas unidades judiciárias e os direitos das mulheres

Entre o decoro institucional e o livre acesso ao Judiciário

Um código de vestimentas — ou, no estrangeirismo amplamente difundido, dress code — consiste no conjunto de regras, formais ou informais, que definem quais trajes são considerados adequados em determinado espaço ou situação. Tais regras podem estar positivadas em normativas institucionais ou decorrer de convenções culturais e sociais historicamente construídas.

Historicamente, herdamos dos povos europeus, especialmente dos modelos ocidentais do século XIX, uma concepção rígida e moralizante do vestuário, associada à ordem, à decência e à distinção social.

No Brasil, esse legado foi incorporado desde o período colonial, atravessando o Império e a República, consolidando-se como elemento simbólico de civilidade e autoridade, sobretudo nos espaços públicos e institucionais. O traje — principalmente o feminino — passou a expressar valores morais e hierarquias sociais, sendo utilizado como instrumento de controle de conduta, especialmente quanto à presença e à visibilidade das mulheres no espaço público.

No poder público, não são raras as tentativas de imposição de padrões estéticos e comportamentais por meio de códigos de vestimenta, usualmente amparadas no argumento da preservação do decoro e da autoridade institucional. Embora o estabelecimento de um dress code possa ser juridicamente aceitável quando voltado à organização funcional dos espaços públicos ou à proteção da integridade dos usuários, tais medidas, quando desconsideram a igualdade de gênero, tendem a reproduzir estereótipos e impor modelos culturais restritivos, alheios à diversidade que caracteriza a sociedade brasileira.

A regulamentação do vestuário, quando pautada por critérios morais ou estéticos excessivamente rigorosos, converte-se em verdadeiro filtro simbólico de acesso ao espaço judicial, atingindo de forma desproporcional as mulheres — tanto aquelas oriundas de camadas populares, frequentemente jovens, negras e periféricas, quanto aquelas com maior escolarização e inserção profissional, que se veem constrangidas por normas que subordinam sua presença institucional à conformidade com padrões patriarcais de aparência e conduta.

Dessa forma, quando normas dessa natureza ignoram as desigualdades estruturais e os marcadores sociais da diferença, deixam de cumprir uma função legítima de organização institucional e passam a operar como mecanismos de exclusão. 

Ao impor padrões que resultam em discriminação ou estigmatização — sobretudo de mulheres —, essas regras transformam-se em barreiras indevidas ao acesso à Justiça, violando princípios constitucionais como a igualdade, a dignidade da pessoa humana e a ampla tutela jurisdicional, além de contrariar compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro na seara dos direitos humanos.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tentou, por meio da Instrução Normativa nº 6/2024, implementar um código de vestimentas que restringia o acesso às suas dependências a pessoas trajando peças consideradas “sumárias”, como cropped, minissaia, bermuda, camiseta sem manga, legging, entre outras. 

A norma suscitou ampla reação social e jurídica, especialmente por afetar, de forma desproporcional, mulheres e pessoas de camadas populares, cujo vestuário cotidiano frequentemente inclui os trajes vedados.

A medida foi suspensa pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, diante da ausência de fundamentação adequada, do elevado grau de subjetividade de seus dispositivos e do risco de constrangimento — sobretudo em razão de marcadores de gênero.

Em sua decisão, o ministro ressaltou que regras dessa natureza podem funcionar como instrumentos de exclusão, ao estabelecerem critérios vagos e moralizantes, alheios às garantias constitucionais de igualdade, dignidade e amplo acesso à jurisdição.

Em decisão paradigmática, o ministro destacou que: "(...) sabemos que o Judiciário é um local de muitas formalidades, no entanto não podemos barrar pessoas pela vestimenta que usam com o risco de gerar constrangimento e afastar a sociedade da instituição (...). O direito de acesso à Justiça demanda, necessariamente, que o cidadão possa naturalmente adentrar nas dependências dos Tribunais, o que pressupõe, também necessariamente, que haja tratamento isonômico e atento às garantias constitucionais no controle de acesso correspondente.”

É preciso reconhecer que normas de vestimenta, quando desprovidas de critérios objetivos, sensíveis à diversidade e aos direitos fundamentais, correm o risco de transformar o ambiente forense em espaço excludente, especialmente para mulheres e grupos socialmente vulnerabilizados: em vez de preservar a institucionalidade, tais medidas podem reforçar desigualdades sob o pretexto de manutenção do decoro, afetando justamente aqueles que mais dependem do Judiciário como instrumento de cidadania. A forma não pode prevalecer sobre o conteúdo dos direitos, quando o vestuário se torna critério para validar a presença de alguém em um tribunal, compromete-se o ideal democrático de Justiça acessível, plural e inclusiva. 

A regulamentação da aparência deve ser excepcional, proporcional e orientada exclusivamente à segurança ou à funcionalidade do espaço institucional — jamais à imposição de padrões morais velados. Mais do que simplesmente normatizar, é recomendável adotar uma abordagem que respeite a realidade social e cultural local, evitando a reprodução de normas punitivas e excludentes.

Fabiano Rabaneda dos Santos e Michelle Matsuura Borralho