"Quem o Direito só sabe nem o direito sabe”. Essa afirmação, cunhada pelo advogado, jornalista e professor San Tiago Dantas (1911- 1964), ressalta a relevância de ampliar perspectivas e não limitar a compreensão jurídica à literalidade da legislação.
Nos últimos tempos, tem havido um aumento significativo no interesse pela aplicação da Neurociência no âmbito das práticas jurídicas. O surgimento do Neurodireito, um campo interdisciplinar que explora a interseção entre a neurociência e o direito (conhecido como Neurolaw em inglês), destaca-se como um estudo inovador, explorando a relação entre o cérebro e o comportamento, proporcionando uma nova perspectiva para os fenômenos legais.
Essa interação entre a Neurociência e o sistema jurídico é especialmente evidente ao examinarmos as alterações neurais experimentadas por vítimas de crimes violentos, especialmente no contexto da violência doméstica contra a mulher. As implicações dessas mudanças neurais para o Sistema de Justiça têm permitido avanços significativos nos estudos relacionados a esse contexto específico.
Segundo as indicações da psicóloga clínica e neurocientista Regina Lúcia Nogueira, do TJDFT, pessoas que passam por experiências de violência sofrem transformações cerebrais que têm o potencial de moldar sua percepção e resposta diante de agressões. Essas mudanças, de caráter não intencional, repercutem diretamente naquilo que seria caracterizado como um comportamento racional. Conforme a especialista em psicobiologia, essa circunstância ainda provoca perplexidade e insegurança quando um caso de violência é apresentado ao sistema jurídico.
Nesse contexto, outra área em que a neurociência pode contribuir é na compreensão de que a decisão de denunciar vai além da coragem, sendo influenciada pelo contexto em que a personalidade da mulher se desenvolveu. Conforme o Dr. Fabiano de Abreu Agrela, a incapacidade de tomar decisões não está atrelada unicamente à coragem. Discutem-se desafios relacionados ao cérebro, e ao abordarmos as condições cerebrais, referimo-nos ao resultado da formação desse órgão ao longo da vida, moldado por diversas influências. Não se trata de algo tão simples; é, na verdade, um processo a ser enfrentado de maneira gradual.
Adicionalmente, o neurologista Fábio Agrela destaca que a exposição contínua à violência pode impactar áreas do cérebro, como o hipocampo, a amígdala e o córtex pré-frontal, comprometendo a regulação emocional e a capacidade de tomada de decisões. Teorias neuropsicológicas também sugerem que o medo da perda e a dependência emocional ao agressor podem criar uma complexa mistura de emoções, dificultando a busca por ajuda.
A repetição da exposição à violência pode levar ao condicionamento, fazendo com que a vítima se acostume com o ciclo de abuso e o perceba como normal em relacionamentos, resultando na diminuição da autoestima e em crenças distorcidas que afetam a capacidade de decisão, incluindo a denúncia. Além disso, o medo de retaliações ou ameaças por parte do agressor pode representar um significativo obstáculo, influenciando a capacidade da vítima de buscar ajuda.
Ao enfrentar um caso de violência doméstica, o magistrado deve ter em mente que a amnésia gerada pelo trauma, causada pelas alterações cerebrais, faz com que a vítima possa ser incapaz de recordar as horas ou o local, mas ainda é capaz de descrever detalhes como o olhar do agressor ou a presença de uma tatuagem, por exemplo. A vítima retém fragmentos que não escolhe, tornando, na prática, a reconstrução dos fatos mais desafiadora.
Nos 11 anos em que fui titular da 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca da Capital, deparei-me com inúmeros casos desse tipo. No enfrentamento dessas situações, é vital para o juiz lembrar que cada indivíduo é único, cada vítima é singular e o cérebro humano responde de maneira individual a esses eventos traumáticos. No exercício da magistratura, os juízes se deparam com a complexidade das decisões, frequentemente influenciadas por suas próprias culturas, vivências, famílias e rotinas diárias. Magistrados, Magistradas, jovens ou mais experientes, trazem consigo uma gama diversificada de perspectivas que moldam suas abordagens diante dos casos que enfrentam.
Diante dessa diversidade, torna-se imperativo que os magistrados dediquem-se ao estudo do comportamento humano, a fim de julgar com justiça e imparcialidade. Nesse sentido, a neurociência surge como uma valiosa aliada, fornecendo instrumentos para uma interpretação mais precisa e equânime dos fatos apresentados em juízo.
Não existe um manual definitivo sobre como proceder nessas situações. Portanto, ao proferir uma sentença, é essencial que o juiz leve em consideração todo o contexto mencionado anteriormente, além de utilizar os insights da neurociência tanto na análise da vítima quanto na prolação da decisão final.
Jamilson Haddad Campos – juiz de Direito do TJMT.