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Cuiabá, 08 de Dezembro de 2025

Opinião Terça-feira, 18 de Novembro de 2025, 13:45 - A | A

Terça-feira, 18 de Novembro de 2025, 13h:45 - A | A

ANGELA LOPES, CIBELI SIMÕES E VITÓRIA MARTINS

Relativização da publicidade nas uniões homoafetivas: a adequação do critério pelo STJ

O que se altera é a forma de leitura desse conjunto probatório nas uniões homoafetivas

Em uma decisão paradigmática proferida em 4 de novembro, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 2.203.770, reconheceu a união estável entre duas mulheres que viveram juntas por mais de 30 anos em uma pequena cidade do interior de Goiás, mesmo sem que o relacionamento tivesse ampla publicidade. Seguindo o voto da relatora, Ministra Nancy Andrighi, o colegiado defendeu a necessidade de adequar o requisito da publicidade à realidade de casais homoafetivos.

Essa decisão reabre um debate que já estava maduro, mas vinha sendo adiado. No vocabulário jurídico, publicidade (notoriedade) significa, em termos simples, que a relação é conhecida pelo entorno social do casal, que é identificado como tal e não vive completamente oculto aos olhos da comunidade.

Essa lógica funciona, com alguma naturalidade, para grande parte das relações heterossexuais. Para muitos casais homoafetivos, porém, a história é outra. O Direito das Famílias sempre se propôs a dialogar com a vida concreta das pessoas, mas nem sempre alcançou a sensibilidade necessária para enxergar quem precisou manter a vida afetiva em silêncio para continuar existindo socialmente. Em muitos contextos, especialmente em cidades pequenas e ambientes marcados por forte conservadorismo, a discrição não decorreu de preferência. Foi a forma possível de permanecer. A reserva foi uma estratégia de preservação em cenários em que a exposição poderia significar rompimentos, instabilidade e constrangimentos que atravessavam a vida cotidiana.

Nesses casos, a ausência de exposição pública não indica falta de vínculo, de projeto compartilhado ou de responsabilidade recíproca. Revela apenas o tipo de ambiente em que aquela relação foi construída. É justamente esse deslocamento de olhar que a decisão do STJ evidencia: a falta de visibilidade social não apaga a existência de uma união estável, mas obriga o intérprete a considerar o contexto em que essa união se estruturou.

O art. 1.723 do Código Civil exige, para a configuração da união estável, "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". Por muito tempo, a palavra “pública” foi traduzida quase como sinônimo de prova social rígida. Esperava-se que o casal aparecesse junto em eventos, fosse tratado como par pela vizinhança, circulasse em espaços comuns sem qualquer reserva. Esse modelo dialoga diretamente com relações que sempre tiveram autorização social para ocupar a rua, a festa de família, a fotografia oficial. Quando se aplica esse mesmo padrão, sem filtros, a uniões homoafetivas que se desenvolveram em ambientes hostis, a exigência deixa de ser critério jurídico e se aproxima de uma barreira praticamente intransponível.

A decisão do STJ não esvazia o requisito da publicidade, nem cria uma categoria paralela de união estável. A convivência continua precisando ser demonstrada, a estabilidade continua relevante, o projeto de vida em comum permanece central. O que se altera é a forma de leitura desse conjunto probatório nas uniões homoafetivas. Em vez de exigir a mesma visibilidade historicamente reservada às relações heterossexuais, o Tribunal admite que a realidade de quem viveu sob risco demanda outro tipo de prova, menos centrada no olhar da rua e mais atenta ao que se construiu dentro do espaço possível.

José Saramago escreveu que “dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. A frase ajuda a lembrar que nem tudo o que existe passa pelo crivo da aprovação social. Muitas uniões homoafetivas se organizaram em torno de rotina, cuidado, divisão de responsabilidades e decisões compartilhadas, ainda que sem rótulo público e sem reconhecimento expresso. O fato de o entorno não ter dado nome a essa realidade não significa que ela não existia. O que a decisão do STJ faz é aproximar o direito dessa evidência: há vínculos que se consolidam à margem da vitrine social, mas nem por isso deixam de ter densidade suficiente para serem reconhecidos como entidade familiar.

Do ponto de vista prático, a decisão tem reflexos importantes no exercício da advocacia. Abre-se espaço para uma construção probatória mais honesta e mais coerente com a realidade de quem não esteve em fotografias oficiais, mas dividiu contas, organizou rotinas, prestou cuidados em momentos de vulnerabilidade, planejou o futuro e foi reconhecido como par em círculos restritos. Provas documentais e testemunhais passam a ser lidas com outra lente: registros de dependência econômica, contas conjuntas, mensagens, fotografias domésticas, relatos de pessoas próximas, tudo o que ajuda a reconstituir a vida em comum que existiu fora da vitrine social. A invisibilidade perante a maioria não pode ser automaticamente convertida em inexistência jurídica.

Em um país em que boa parte dos avanços em direitos da população LGBTQIA+ se consolidou a partir de decisões judiciais, a releitura do critério da publicidade pelo STJ não é ruptura, mas continuidade. Não se trata de flexibilizar indiscriminadamente a união estável, e sim de impedir que um requisito pensado em outro contexto seja utilizado para negar proteção justamente a quem mais esteve exposto à exclusão. A união estável só cumpre sua função quando é capaz de reconhecer, como entidade familiar, aquilo que na prática já se comporta como tal.

Ao admitir que a publicidade deve ser interpretada à luz do contexto, o Tribunal reafirma a centralidade da dignidade da pessoa humana no Direito das Famílias. A Constituição não autoriza que relações marcadas por cuidados recíprocos, responsabilidades compartilhadas e projeto de vida em comum sejam ignoradas apenas porque não puderam ocupar o espaço público com tranquilidade. Em muitos casos, a discrição não significou distância afetiva, mas uma resposta às condições objetivas de hostilidade.

Ao final, a decisão do STJ recoloca o requisito da publicidade no lugar que lhe é próprio: como elemento relevante, mas não absoluto. A publicidade continua a existir como sinal de união estável, mas não pode ser aplicada com tamanha rigidez a ponto de transformar a proteção jurídica em privilégio de quem sempre pôde se expor sem risco. Reconhecer a união estável homoafetiva em contextos de discrição não amplia indevidamente o conceito de família. Apenas evita que uma formalidade, lida de forma descolada da realidade, apague uma história que, embora vivida com discrição, existiu plenamente.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.203.770/GO. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 4 de novembro de 2023.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Angela Thainara J. Lopes, advogada no Escritório Simões Santos, Nascimento & Associados Sociedade de Advocacia; Pós-graduanda em Direito Privado e Pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões pelo Instituto Legale Educacional S.A.

Cibeli Simões Santos, advogada, Sócia- fundadora do Escritório Simões Santos, Nascimento & Associados Sociedade de Advocacia; Especialista em Direito Tributário pela UNIDERP-SP; especialista em Linguística pela UNEMAT; especialista em Direito Civil Contemporâneo pela UFMT; especialista em Direito de Família pela Universidade de Coimbra; Mestra em Linguística pela Universidade do Estado de Mato Grosso; Doutora em Direito pela Universidade de Marília- SP; Conselheira estadual da OAB/MT triênio 2019/2021; Presidente da 3ª Subseção de Cáceres- OABMT, triênio 2022/2024 e 2025/2027. Autora do Livro “Propriedade Privada e a Função social Constitucional: o complexo equilíbrio entre Meio Ambiente e Agronegócio na Ordem Econômica Brasileira”.

Vitória F. Martins Bruno, advogada no Escritório Simões Santos, Nascimento & Associados Sociedade de Advocacia, Pós-graduanda em Atuação Prática das Famílias e Sucessões.