A cidade de Cuiabá, com mais de 300 anos de história, possui um Centro Histórico que guarda importantes marcas da formação urbana, cultural e arquitetônica do estado de Mato Grosso. No entanto, a ausência de incentivos efetivos e investimentos contínuos tem levado à deterioração de muitos imóveis tombados ou protegidos por seu valor histórico.
Nesse cenário, um instrumento urbanístico com grande potencial transformador — ainda pouco explorado — é a comercialização do potencial construtivo excedente, prevista na legislação municipal.
O que é o Potencial Construtivo Excedente?
Segundo a Lei Complementar nº 389/2015, o potencial construtivo é o coeficiente de aproveitamento definido para cada zona urbana que pode ser utilizado livremente, sem necessidade de aquisição adicional.
Já o potencial construtivo excedente é a parcela que ultrapassa esse limite e, por isso, só pode ser utilizada mediante aquisição onerosa junto ao Município ou por meio de transferência de imóveis com restrição de uso — como os localizados nas Zonas de Interesse Histórico (ZIH) e Zonas de Interesse Ambiental (ZIA).
O art. 203 da LC 389/2015 estabelece expressamente:“A transferência de potencial construtivo poderá ser concedida ao proprietário nos casos de proteção, quando o imóvel for de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural.”
Base legal no Plano Diretor
O próprio Plano Diretor de Cuiabá (LC nº 150/2007) determina, entre suas diretrizes, a necessidade de:
• Preservar e recuperar o patrimônio cultural, histórico, paisagístico e urbanístico do Município (art. 9º, XXIII);
• Criar incentivos fiscais, tributários e financeiros para viabilização econômica do Centro Histórico;
• Promover a revitalização da região do Porto e outros núcleos urbanos com valor histórico (art. 9º, XIV, alínea “g” e “h”).
Portanto, a legislação municipal já reconhece e incentiva a utilização do potencial construtivo excedente como mecanismo legítimo de fomento à preservação cultural e valorização territorial.
Como transformar isso em desenvolvimento urbano?
O potencial construtivo excedente gerado por imóveis localizados na ZIH — como os do centro e do bairro do Porto — pode ser comercializado por seus proprietários a empreendedores interessados em construir em outras regiões da cidade, onde há demanda por adensamento.
Essa operação apresenta vantagens mútuas e estratégicas para todos os envolvidos:
1. O proprietário do imóvel histórico, impossibilitado de utilizar integralmente seu potencial construtivo por restrições legais, passa a gerar receita com a venda desse excedente, viabilizando financeiramente a restauração e conservação do bem protegido;
2. O comprador do potencial construtivo excedente, ao adquirir diretamente de um proprietário localizado em Zona de Interesse Histórico (ZIH), pode negociar livremente o valor da operação, ao contrário da aquisição feita diretamente junto ao Município, que segue os valores fixos definidos na Planta Genérica. Além disso, obtém o direito de adensar seu empreendimento acima do coeficiente básico permitido, ampliando a viabilidade econômica do projeto;
3. O Município, como gestor da política urbana, deve assumir papel central na regulação da operação, garantindo a transparência, segurança jurídica e equilíbrio entre oferta e demanda de potencial construtivo excedente.
Cabe ainda ao poder público direcionar os recursos arrecadados com as outorgas onerosas para investimentos estruturantes no próprio Centro Histórico — como melhorias urbanas, requalificação do espaço público, drenagem, segurança e iluminação — criando um ciclo virtuoso de preservação e valorização da região.
Oportunidade de política pública concreta
A regulamentação está feita. A base legal é robusta.
O que falta é ação institucional para:
•Divulgar aos proprietários que seus imóveis têm valor econômico latente por meio do potencial construtivo excedente;
• Facilitar os processos de certificação e transferência, com atuação ativa do município;
• Garantir que os recursos arrecadados retornem à própria área histórica, promovendo um círculo virtuoso de valorização urbana.
Conclusão
A revitalização do Centro Histórico de Cuiabá não precisa depender exclusivamente de recursos públicos ou de programas externos. O próprio patrimônio pode ser a fonte de sua recuperação, desde que se adote uma gestão estratégica dos instrumentos urbanísticos existentes.
Valorizar o potencial construtivo excedente é reconhecer que o passado tem valor presente — e que o futuro da cidade depende do respeito à sua história.
Iliete L. Yung – Advogada especialista em Direito Tributário, com ênfase em Direito Empresarial, e atuação nas áreas de Urbanismo e Assuntos Fundiários.