É comum que pais, mães ou responsáveis tenham vontade de mostrar ao mundo o quanto uma criança é especial. O primeiro passo, o sorriso espontâneo, a fantasia da escola, a viagem em família. Compartilhar momentos assim faz parte da vivência afetiva de muitas famílias e, em muitos casos, é feito com carinho e naturalidade. Mas quando essa exposição se torna constante, pública e detalhada, surge a pergunta: até onde vai a demonstração de afeto e onde começa o excesso da exposição?
Essa questão foi enfrentada recentemente através de sentença publicada pelo juízo da 3ª Vara de Família de Rio Branco, do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (TJAC). A sentença proibiu um casal de continuar postando imagens do próprio filho nas redes sociais por entender que havia uma superexposição da criança, ultrapassando o que se espera de registros afetivos e passando a comprometer direitos fundamentais do infante, como a intimidade, a imagem e o desenvolvimento emocional.
Esse comportamento é denominado como sharenting, uma junção das palavras share (compartilhar) e parenting (parentalidade), usada para descrever o hábito de pais ou responsáveis que publicam com frequência a vida das crianças nas redes sociais. A decisão alerta que embora o gesto seja muitas vezes, bem-intencionado, ele pode trazer riscos quando feito sem critérios ou sem considerar o melhor interesse da criança.
É necessário recordar que o direito ao respeito e à dignidade da criança e do adolescente é assegurado de forma expressa pelo artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente[1].
No caso concreto, a magistrada da 3ª Vara da Família de Rio Branco reconheceu que havia uma exposição excessiva da criança nas redes sociais e, com base na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e nos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), determinou algumas restrições. A sentença autorizou a divulgação apenas em contextos pontuais, como datas comemorativas ou registros familiares esporádicos. Embora a decisão preveja sanções em caso de descumprimento, como multa ou eventual revisão das condições de guarda, o mais relevante parece ser o recado que transmite: a infância precisa ser tratada como espaço de proteção, inclusive, no ambiente digital.
Além disso, a legislação brasileira impõe regras específicas quanto ao tratamento de dados pessoais de crianças, exigindo consentimento destacado dos pais ou responsáveis legais[2]. Essa exigência reforça o dever de cautela dos responsáveis ao disponibilizarem imagens e informações pessoais dos filhos.
A decisão aponta para uma mudança de perspectiva. Ela sugere que, mesmo quando há boas intenções por parte dos pais, é preciso ter cautela na forma como a imagem das crianças é exposta em ambiente virtual. Afinal, por mais natural que pareça compartilhar esses momentos, é importante lembrar que crianças não têm plena capacidade de consentir com o que está sendo publicado sobre elas e o impacto disso pode se estender para além da infância.
A Constituição Federal também assegura direitos fundamentais diretamente aplicáveis à proteção da criança e do adolescente, especialmente no que se refere à inviolabilidade da intimidade e à prioridade absoluta de seus direitos[3].
O ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de normas que garantem essa proteção. A Constituição assegura a inviolabilidade da imagem e da vida privada. O ECA reforça a proteção moral e psicológica da criança. A LGPD traz regras específicas sobre o tratamento de dados pessoais de menores de idade. Já o Marco Civil da Internet trata da responsabilidade civil de quem pública e compartilha conteúdo nas redes.
A legislação também impõe deveres às plataformas digitais no que diz respeito à proteção da privacidade de seus usuários, inclusive menores de idade[4]. Isso significa que não apenas os pais, mas também os provedores podem ser responsabilizados por permitir ou facilitar a exposição indevida de crianças e adolescentes.
Fato é que registrar a infância é legítimo. Compartilhar momentos felizes também. O que se tornou motivo de atenção é quando a frequência, o conteúdo ou o objetivo da publicação deixam de ser espontâneos e passam a atender mais ao desejo de adultos do que atender ao bem-estar da criança. Uma ou outra foto dificilmente será problemática. Mas expor rotinas, detalhes íntimos, da saúde ou da vida escolar de uma criança, de forma aberta ou contínua, podem trazer riscos reais, inclusive o uso indevido das imagens, vazamento de dados, constrangimento futuro ou impacto psicológico, colocando em risco a saúde e segurança dos menores.
Tais práticas podem configurar, inclusive, violação aos deveres inerentes ao poder familiar[5], especialmente no que diz respeito à guarda e à proteção da integridade física e moral dos filhos menores. A superexposição, quando desarrazoada e reiterada, pode ser entendida como negligência ou desídia, suscetível de revisão judicial, inclusive no que tange à guarda e ao convívio.
A decisão do TJAC traz uma reflexão importante: a autoridade dos pais não é ilimitada. O poder familiar é uma função jurídica exercida em nome do melhor interesse da criança, e não uma permissão irrestrita. O excesso na exposição pode configurar, inclusive, negligência afetiva e desídia com os direitos e cuidados da criança.
Proteger a infância também significa ausência de exposição excessiva. Permitir que a criança cresça com liberdade para construir sua própria história e identidade, com privacidade, sem que seja transformada em conteúdo digital desde os primeiros anos de vida. A tecnologia faz parte da vida contemporânea, mas não pode servir de argumento para que se ultrapassem os limites do respeito e da dignidade.
O sharenting, por si só, não configura uma conduta ilícita. Compartilhar registros da infância é parte natural da vivência familiar, desde que feito com discernimento. O cuidado está em perceber quando o gesto afetuoso ultrapassa o limite do razoável e passa a expor excessivamente a criança. O caso busca mais do que proibir ou censurar, trata-se de incentivar uma reflexão. Em muitos casos, proteger também significa saber preservar, inclusive da exposição constante.
Cibeli Simões Santos, advogada, sócia fundadora do Escritório Simões Santos, Nascimento & Associados Sociedade de Advocacia; Mestra em Linguística pela Universidade do Estado de Mato Grosso; Doutora em Direito pela Universidade de Marília- SP; Presidente da 3ª Subseção de Cáceres- OABMT, triênio 2025/2027.
Angela Thainara J. Lopes, advogada no Escritório Simões Santos, Nascimento & Associados Sociedade de Advocacia; Pós-graduanda em Direito Privado e Pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões pelo Instituto Legale Educacional S.A.
Vitória Fernanda Martins Bruno, estagiária no Escritório Simões Santos, Nascimento & Associados Sociedade de Advocacia e graduanda em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso.
Citações e referências
[1] Art. 17 da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente): "O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais." (BRASIL, 1990)
[2] Art. 14 da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD): "O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou responsável legal. [...] O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado no seu melhor interesse." (BRASIL, 2018)
[3] Art. 5º, inciso X, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Art. 227, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária [...]”. (BRASIL, 1988).
[4] Art. 3º, inciso II, da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet): “A disciplina do uso da internet no Brasil tem como princípios: [...] II – a proteção da privacidade.” Art. 19 da mesma lei: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo indicado como infringente.” (BRASIL, 2014).
[5] Art. 1.634 do Código Civil: “Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I – dirigir-lhes a criação e a educação; II – exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos da lei; III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro município; VI – representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem parte, suprindo-lhes o consentimento; VII – designar-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VIII – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; IX – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.” (BRASIL, 2002).
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre o tratamento de dados pessoais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.
BRASIL. Marco Civil da Internet. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2014.
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA – IBDFAM. Decisão contra sharenting é um alerta para pais e responsáveis, diz advogada. 17 jul. 2025.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ACRE – TJAC. Sharenting: Justiça proíbe casal de expor excessivamente o filho nas redes sociais. Rio Branco, AC, 15 jul. 2025.