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Cuiabá, 20 de Junho de 2025

Opinião Terça-feira, 17 de Junho de 2025, 07:00 - A | A

Terça-feira, 17 de Junho de 2025, 07h:00 - A | A

CARLA FAHIMA

A seletividade penal nos casos de maus-tratos contra cães e gatos

Casos de maus-tratos contra cães e gatos, mesmo diante da nova pena, vêm sendo frequentemente tratados como passíveis de ANPP

Em setembro de 2020, o Brasil deu um importante passo na proteção dos animais, especialmente cães e gatos, com a entrada em vigor da Lei nº 14.064/20, que alterou o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98). A mudança legislativa incluiu o §1º-A, que prevê pena de reclusão de 2 a 5 anos, multa e proibição da guarda para quem praticar maus-tratos especificamente contra esses animais.

A nova redação representou um marco. Afinal, a antiga pena — de detenção de 3 meses a 1 ano — historicamente contribuía para o sentimento de impunidade. A partir da mudança, a pena passou a permitir reclusão, flagrante com prisão imediata e até impedimento de benefícios penais automáticos. Era, enfim, uma tentativa do legislador de dar uma resposta mais contundente à crescente violência contra os animais, muitas vezes silenciada ou invisibilizada.

No entanto, quatro anos após essa conquista, o que se vê é um cenário de descompasso entre a legislação e a prática forense. Casos de maus-tratos contra cães e gatos, mesmo diante da nova pena, vêm sendo frequentemente tratados como passíveis de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) — instrumento que, à luz do artigo 28-A do Código de Processo Penal, só pode ser proposto quando o crime for sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos.

Ora, quando falamos de maus-tratos a cães e gatos — cuja pena mínima é de dois anos, mas cujo máximo alcança cinco anos — é evidente que a aplicação do ANPP torna-se juridicamente incompatível, principalmente se considerarmos o caráter hediondo e doloso de muitas condutas.

A insistência em oferecer acordos em situações que extrapolam os critérios legais coloca em risco não apenas a credibilidade do sistema de justiça, mas também a vida e a dignidade dos animais, que seguem sendo vítimas de abusos normalizados por decisões brandas. Mais do que isso: reforça a ideia distorcida de que crimes contra animais não importam, apesar do avanço na consciência coletiva e da legislação mais rígida.

É preciso, portanto, um olhar mais técnico e comprometido por parte do Ministério Público, do Judiciário e da advocacia. A aplicação da lei deve respeitar seu espírito de proteção, e não abrir brechas para retrocessos disfarçados de alternativas penais. O ANPP não foi criado para blindar criminosos da responsabilização real, mas para desafogar o sistema em casos de menor gravidade — o que definitivamente não se aplica a quem mutila, agride, abandona ou tortura seres vivos indefesos.

O Direito Animalista é, acima de tudo, um direito que dialoga com a ética, com a ciência e com os princípios constitucionais da dignidade da vida. Reduzir sua aplicação a um ritual simbólico é trair não só os animais, mas a sociedade como um todo, que clama por justiça real e eficaz.

É hora de nos perguntarmos: até que ponto vale a justiça?

E mais importante: a justiça vale o mesmo para todos — inclusive para os que não falam?

Por Carla Fahima — Advogada Animalista