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Cuiabá, 10 de Maio de 2025

Opinião Quinta-feira, 08 de Maio de 2025, 07:59 - A | A

Quinta-feira, 08 de Maio de 2025, 07h:59 - A | A

VICTOR ALIPIO

A incompatibilidade da justiça penal negociável no Brasil à luz do culturalismo jurídico

A introdução de mecanismos negociais na esfera penal cria um cenário perigosamente propenso a distorções

1. Introdução

A adoção, ainda que parcial ou adaptada, de mecanismos como a justiça penal negociável, com destaque para a figura da colaboração premiada, oriunda de tradições jurídicas distintas, suscita questionamentos profundos sobre sua compatibilidade com a matriz cultural e histórica que moldou o direito brasileiro ao longo de mais de cinco séculos.

Para compreender a dimensão dessa incompatibilidade, é imprescindível recorrer ao conceito de culturalismo jurídico. O direito não é um conjunto de normas abstratas e universais, descoladas da realidade social, mas sim uma manifestação intrinsecamente ligada à cultura, aos valores, à história e ao espírito de um povo. Cada sistema jurídico reflete uma visão de mundo, uma forma particular de conceber as relações sociais, o papel do Estado e, crucialmente, o significado da justiça. Ignorar essa dimensão cultural ao transplantar mecanicamente institutos estrangeiros equivale a tentar impor uma forma estranha a um conteúdo que a repele, gerando distorções, insegurança jurídica e, em última análise, um enfraquecimento da própria identidade jurídica nacional.

2. CULTURA ROMANO-GERMÂNICA VS. CULTURA ANGLO-SAXÔNICA.

A compreensão da profunda divergência entre a justiça penal negociável e o sistema jurídico brasileiro exige uma análise comparativa das matrizes culturais que lhes dão origem e sustentação: a romano-germânica, que moldou o direito continental europeu e, por conseguinte, o brasileiro, e a anglo-saxônica, berço do Common Law e de institutos como o plea bargaining. Essas tradições não representam meras diferenças formais ou procedimentais, mas sim visões de mundo distintas sobre o papel do direito, a função do processo penal e o próprio conceito de justiça.

A tradição romano-germânica, na qual o Brasil se insere, possui raízes históricas fincadas no Direito Romano e no Direito Canônico. O Direito Romano legou a primazia da lei escrita (codificada) como fonte principal/primária do direito, a busca por um sistema jurídico racional, coerente e dotado de certa abstração, capaz de oferecer soluções gerais para casos concretos. O Direito Canônico, por sua vez, exerceu influência marcante, especialmente na Idade Média, ao incorporar elementos éticos e morais à concepção de justiça. Eventos como o Quarto Concílio de Latrão (1215), embora complexos e multifacetados em seus desdobramentos históricos, refletem um período de consolidação de estruturas e procedimentos inquisitoriais na Igreja que, de alguma forma, permearam o desenvolvimento dos sistemas processuais penais na Europa continental. Essa influência, combinada com o racionalismo iluminista posterior, consolidou um modelo que valoriza a busca pela verdade material – a reconstrução mais fiel possível dos fatos ocorridos – como objetivo central do processo penal. A justiça, nessa perspectiva, não é um mero acordo entre partes, mas a aplicação correta da lei, vista como expressão da razão e da vontade geral, a um fato comprovado. A forte influência da ética cristã, particularmente católica, no desenvolvimento cultural brasileiro também reforça uma visão de justiça ligada a valores de retribuição, verdade e reparação moral, que dificilmente se coaduna com a ideia de negociar a aplicação da sanção penal.

Em contrapartida, a tradição anglo-saxônica, predominante em países como Inglaterra e Estados Unidos, desenvolveu-se a partir dos costumes e das decisões judiciais (precedents). O Common Law caracteriza-se por um maior pragmatismo e uma orientação mais voltada à resolução de conflitos específicos do que à construção de um sistema abstrato e codificado. O processo penal, nesse contexto, assume contornos marcadamente adversariais, onde a verdade emerge (ou não) do embate entre as partes (acusação e defesa) perante um juiz relativamente passivo. A justiça, frequentemente, é vista com menos interesse como a aplicação de uma verdade objetiva e mais como a obtenção de um resultado aceitável e eficiente para as partes envolvidas e para o sistema como um todo. É nessa atmosfera cultural, particularmente no contexto norte-americano, com sua objetividade marcante e foco na eficiência administrativa e na gestão do altíssimo volume de casos criminais, que florescem mecanismos como o plea bargaining. A ideia de "negociar" a culpa ou a pena, buscando a pacificação do conflito e a economia processual, torna-se não apenas aceitável, mas central para o funcionamento do sistema. Trata-se, portanto, de uma lógica que prioriza o acordo e a eficiência em detrimento da busca pela verdade material e da aplicação estrita da lei, refletindo um culturalismo jurídico distinto daquele que permeia a tradição romano-germânica e, consequentemente, o direito brasileiro.

2.1. OS ORDÁLIOS E A NEGAÇÃO DA RAZÃO NA BUSCA PELA VERDADE.

Para contrastar ainda mais a essência da tradição romano-germânica, focada na razão e na legalidade, com a lógica objetivista e por vezes irracional que permeia a justiça negociada, é instrutivo revisitar brevemente as formas mais primitivas de "prova" judicial: os ordálios, ou Juízos de Deus (judicium Dei). Essas práticas, comuns na Antiguidade e na Alta Idade Média europeia, inclusive entre os povos germânicos que influenciaram o continente, representavam a antítese da busca racional pela verdade material. Fundamentados na crença mística de que a divindade interviria diretamente para revelar a culpa ou inocência através de provas físicas brutais – como imersão em água fervente, caminhar sobre brasas, segurar ferro incandescente ou o combate judicial –, os ordálios delegavam a decisão a forças sobrenaturais, abdicando da análise fática e da aplicação lógica da lei (TARUFFO, 2012).

Embora possam ser vistos como "culturalmente racionais" dentro do contexto místico e de limitados recursos investigativos da época, como aponta Michele Taruffo, os ordálios representavam um sistema probatório pré-racional. Sua funcionalidade residia na capacidade de oferecer uma solução definitiva e socialmente aceita para as controvérsias, muitas vezes como último recurso quando outras provas (testemunhas, documentos) falhavam. Contudo, a própria Igreja Católica, através de figuras como Pedro Cantor no século XII e, decisivamente, no Quarto Concílio de Latrão em 1215 sob o Papa Inocêncio III, passou a criticar e proibir a participação clerical nessas práticas, considerando-as uma forma de tentar a Deus e incompatíveis com a razão teológica e jurídica que se consolidava. Esse movimento, aliado à redescoberta do Direito Romano e ao desenvolvimento do Direito Canônico, marcou um ponto de inflexão crucial, impulsionando a transição para sistemas probatórios baseados na investigação, na prova testemunhal qualificada, nos documentos e na análise racional dos fatos pelo juiz – pilares da tradição romano-germânica que herdamos.

Trazer à memória os ordálios não significa equipará-los diretamente à justiça negociada contemporânea. Contudo, a reflexão serve para sublinhar o valor da trajetória histórica que levou à superação de métodos irracionais ou puramente resolutos em favor da busca pela verdade e pela justiça através da razão e do devido processo legal. A justiça negociada, ao reintroduzir a possibilidade de resolver o processo penal não pela apuração dos fatos e aplicação da lei, mas por um acordo de vontades muitas vezes desequilibrado e focado na eficiência ou conveniência, representa, sob certo aspecto, um desvio preocupante dessa trajetória racionalista e garantista, ainda que seus mecanismos sejam distintos dos rituais medievais.

2.2. A DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA COMO FATOR FACILITADOR DE DISTORÇÃO.

A justiça penal negociável não pode prescindir de uma profunda reflexão sobre suas implicações no contexto específico da sociedade brasileira, marcada por abissais desigualdades socioeconômicas. Ignorar essa realidade, como frequentemente ocorre nos debates que importam acriticamente modelos estrangeiros ("passando em brancas nuvens"), significa fechar os olhos para o potencial devastador desses mecanismos em um terreno fértil para a injustiça e a perpetuação de privilégios. A promessa de eficiência e celeridade da justiça negociada esbarra na crua realidade de um país onde o acesso à justiça e a capacidade de defesa são dramaticamente desiguais, transformando o que poderia ser um instrumento processual em uma ferramenta de aprofundamento da seletividade penal e da impunidade dos poderosos.

Em uma sociedade onde recursos financeiros e poder econômico se traduzem diretamente em maior capacidade de influência e acesso a uma defesa técnica de excelência, a introdução de mecanismos negociais na esfera penal cria um cenário perigosamente propenso a distorções. Os "patrocinadores" de grandes empreitadas criminosas, aqueles que lucram exorbitantemente com a atividade ilícita e possuem vastos recursos, encontram na colaboração premiada e em outros acordos uma via potencial para minimizar suas responsabilidades ou até mesmo garantir a impunidade. Podem contratar os advogados mais caros e especializados, capazes de explorar brechas e negociar os termos mais favoráveis. Mais grave ainda, podem usar seu poder econômico para manipular o próprio processo de colaboração, seja oferecendo vantagens financeiras a outros envolvidos para que assumam a culpa ou direcionem suas delações, seja utilizando ameaças e coação para silenciar testemunhas ou obter depoimentos convenientes. A justiça, nesse cenário, corre o risco de se tornar uma mercadoria, acessível apenas àqueles que podem pagar por ela, violando frontalmente o princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, CF).

Na outra ponta do espectro social, a realidade é brutalmente diferente. Para a vasta maioria da população carcerária brasileira – majoritariamente jovem, negra, com baixa escolaridade e sem recursos financeiros, como demonstram os dados do INFOPEN –, a justiça negociada pode representar uma armadilha. Sem acesso a uma defesa técnica efetiva e qualificada (a Defensoria Pública, apesar de seus esforços heróicos, ainda luta contra a sobrecarga e a falta de estrutura em muitas regiões), o investigado pobre e vulnerável torna-se presa fácil para a pressão estatal. Diante da ameaça de um processo longo, custoso e com resultado incerto, e muitas vezes sem compreender plenamente seus direitos ou as consequências do acordo, ele pode ser induzido a confessar crimes que não cometeu ou aceitar condições desproporcionais apenas para se livrar rapidamente da persecução penal. A confissão, nesse contexto, deixa de ser um ato voluntário para se tornar resultado de constrangimento, ressuscitando a perigosa figura da "rainha das provas" em um sistema que deveria primar pela presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF) e pelo contraditório (art. 5º, LV, CF), como alertam as críticas ao "plea bargain à brasileira" (RIBEIRO; TOLEDO, 2019).

A expansão do consensualismo penal, como aponta Chilante (2022), transforma a acusação em um "instrumento de pressão", gerando um "perverso intercâmbio" que pode levar a autoacusações falsas e a uma profunda desigualdade de tratamento. Quem não aceita "negociar" enfrenta uma "complexa e burocrática guerra", enquanto o sistema, focado em números e eficiência, pode atropelar garantias fundamentais. Portanto, a análise da justiça negociada no Brasil exige um olhar atento e crítico sobre como a desigualdade socioeconômica inerente à nossa realidade pode corromper seus propósitos declarados, transformando-a em um fator de aprofundamento da injustiça social e da seletividade do sistema penal, em flagrante contradição com os ideais de um Estado Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa humana e na igualdade perante a lei.

VEJA ABAIXO O ARTIGO NA ÍNTEGRA.

VICTOR ALIPIO AZEVEDO BORGES – Advogado Criminalista, Sócio Proprietário do Escritório Azevedo Borges Advogados. Especialista em Direito Constitucional Aplicado; em Direito Penal e Processual Penal.