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Cuiabá, 06 de Junho de 2025

Opinião Quarta-feira, 17 de Janeiro de 2018, 09:43 - A | A

Quarta-feira, 17 de Janeiro de 2018, 09h:43 - A | A

A robotização judicial: a flexibilização do princípio da presunção de inocência consagrado na Constituição Federal

Sabe-se que a privação da liberdade do indivíduo, decorrente do encarceramento, jamais poderá ser integralmente restituída, pois mesmo que o agente seja indenizado monetariamente pelo sofrimento suportado, sua vida seguirá com o trauma do cárcere

Jiancarlo Leobet

A presunção de inocência, princípio consagrado constitucionalmente pela Carta Maior desta República em seu art. 5º, LVII, foi, por meio do histórico julgamento do Habeas Corpus n. 126.292/SP, substancialmente flexibilizada pelo egrégio Supremo Tribunal Federal.

Relembra-se e registra-se que o entendimento explicitado no HC retromencionado constitui inovação deveras controversa no âmbito judiciário, já que não é novidade a prolação de decisões diversas e posteriores por ministros membros do Excelso STF em vários outros casos, a exemplo a recente concessão do HC n.º 137063.

De especial relevância rememorar que o princípio da presunção de inocência visa assegurar aos cidadãos brasileiros a utilização livre e irrestrita de todos os meios e recursos inerentes ao exercício pleno da ampla defesa, permitindo-se aos acusados que comprovem sua desvinculação para com o ato ilícito que lhes foi imputado em todos os graus de jurisdição existentes.

No espeque, garantir aos acusados o tratamento digno de inocência, considerando-o culpado apenas após esgotadas as possibilidades de defesa, isto é, depois de se operar o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é permitir a vida digna e iniciar, desde logo, a ressocialização do suposto infrator.

Este entendimento, inclusive, sempre esteve presente nas reiteradas decisões tomadas pela Corte Suprema da República Brasileira, tratando-se do posicionamento dominante no e. STF, conferindo a interpretação literal deste trecho (art. 5º, LVII) do texto constitucional, nos moldes da hermenêutica positivada pelo Constituinte.

Apesar disso, em 17 de fevereiro de 2016, o saudoso Ministro Teori Zavaski inaugurou o entendimento de que a presunção de inocência pode ser parcialmente superada para que o acusado inicie o cumprimento de sua pena imediatamente após o julgamento em segunda instância, fundamentando seu voto nas seguintes razões, in verbis:

“Em consequência, tem-se que a condenação implementada pelo Tribunal de Justiça ainda não transitou em julgado porque o recorrente, naquela via recursal, deduziu pretensão semelhante à que veiculou no presente habeas corpus, invocando, também lá, violação ao princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Constituição Federal). Contudo, não fez qualquer alegação ou consideração sobre sua participação nos fatos delituosos apontados pelo Ministério Público e que resultaram no decreto condenatório. A linha de argumentação trazida no apelo extremo é de que o embargante não poderia ter sido preso, para fins de execução da pena, logo após o julgamento de sua apelação.

Portanto, ainda que provido o seu recurso, a prisão seria iminente e absolutamente nada acerca da culpabilidade seria alterada”.

Registre-se, aqui, não obstante os inúmeros textos e estudos elaborados acerca do acórdão em comento, que o presente escrito volta-se à exposição de argumentações desfavoráveis ao julgado.

Devem os magistrados, desembargadores e ministros analisar os casos de acordo com suas peculiaridades, observando as garantias asseguradas ao povo, que é o verdadeiro titular do Poder Constituinte, impedindo a prolação de decisões robotizadas sob o pretexto da flexibilização do princípio da presunção de inocência

Extrai-se do voto do e. Ministro Teori Zavascki que sua tese fundamenta- se no fato de, a seu ver, a condenação imposta em segunda instância implicar na imutabilidade da culpabilidade do agente, porquanto nos Tribunais Superiores seria inadmissível a apreciação dos fatos tidos como criminosos.

Neste viés, ao entender que a culpabilidade não pode ser alterada mesmo antes de se operar o trânsito em julgado da decisão condenatória, ainda que pendentes de análise recursos especiais ou extraordinários, seria possível a execução imediata da pena sem que isso violasse o princípio da presunção de inocência, sob o aspecto que a inocência, nesse momento, não poderia mais ser presumida.

Entretanto, a prática judiciária permite concluir de forma diversa, pois em várias situações o recurso interposto perante os Tribunais Superiores pode produzir efeitos acerca do juízo de culpabilidade anteriormente exercido na segunda instância.

Inclusive, em seu voto o Ministro Relator do HC n. 126.292/SP reconheceu essa circunstância, argumentando que naquele caso específico não houve alegação acerca da participação do Paciente no fato delituoso que lhe foi imputado pelo Parquet, vejamos o respectivo trecho:

“(...) não fez qualquer alegação ou consideração sobre sua participação nos fatos delituosos apontados pelo Ministério Público e que resultaram no decreto condenatório.

“(...) A linha de argumentação trazida no apelo extremo é de que o embargante não poderia ter sido preso, para fins de execução da pena, logo após o julgamento de sua apelação. Portanto, ainda que provido o seu recurso, a prisão seria iminente e absolutamente nada acerca da culpabilidade seria alterada”.

Diante disso, verifica-se que a questão fática posta ao crivo da Corte Maior e que resultou no novo entendimento não está estabilizada, isso, pois, está vinculada a uma exceção, evidenciando sua não aplicabilidade de forma deliberada para todos os casos.

Nesse contexto, a execução provisória da pena após o improvimento de seu apelo não é medida idônea, eis que o manejo de recursos destinados às instâncias superiores, como o especial e/ou extraordinário, ou mesmo a impetração de habeas corpus, poderá alterar as circunstâncias até então decididas e eventualmente reconhecer a ilegalidade da segregação, reduzir a pena imposta ou afixar regime de cumprimento diverso do fechado.

Sabe-se que a privação da liberdade do indivíduo, decorrente do encarceramento, jamais poderá ser integralmente restituída, pois mesmo que o agente seja indenizado monetariamente pelo sofrimento suportado, sua vida seguirá com o trauma do cárcere imposto preteritamente ao escoamento de todos os meios defensivos.

No mesmo turno, flexibilizar a presunção de inocência transcrita no art. 5º, LVII, e permitir o encarceramento quando da condenação em segunda instância, revela o potencial extensivo do grave e evidente prejuízo de ordem moral e social não só àquele agente que fora condenado em primeira e segunda instâncias (e que posteriormente foi posto em liberdade através de pronunciamento favorável das Cortes Superiores), mas também em outra conjectura mais gravosa.

A hipótese mais grave é externada quando há eventual absolvição do acusado pelo juízo de primeira instância e, posteriormente, com a interposição de apelação pelo Ministério Público, o Tribunal reforma a sentença absolutória para condenar o réu e, com isso, adotando o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ordena a prisão imediata do agente para iniciar a execução provisória da pena.

Veja que neste caso há uma condenação única, isto é, não revista, a qual terá o condão de privar imediatamente o indivíduo de sua liberdade (antes em pleno exercício), sem que lhe seja possível a discussão recursal sob a ótica do duplo grau de jurisdição.

No curso do esposado, constata-se que mesmo no caso de existir a condenação por apenas um único órgão jurisdicional, ao aplicar o entendimento afixado no HC n. 126.292/SP, o Tribunal deveria determinar a prisão do acusado, mesmo quando existirem circunstâncias que o abonem, como o trabalho lícito e o fato de ser arrimo de família.

A decisão proferida deste modo não pode ficar adstrita unicamente ao Tribunal revisor, haja vista a necessidade de se observar o duplo grau de jurisdição, sobretudo em casos de condenação que impliquem no encarceramento do réu.

Desses pressupostos, a fundamentação constante do acórdão em comento, isto é, de que a culpa se consolidaria a partir do julgamento em segunda instância, não possui perfeita adequação para com a realidade, e tampouco revela observância aos princípios gerais que regem o Ordenamento Jurídico Pátrio, ocasionando, daí, a inversão de papéis, tratando a segregação como regra, conquanto claramente a Carta Republicana a elencara como exceção.

A Constituição Federal deve ser concebida e interpretada como o seu povo, com as suas constantes adaptações as alterações políticas, jurídicas e, especialmente, sociais, mas sempre consagrando o que o Constituinte Originário externou.

Nota-se, a partir do julgado em voga, que a superação parcial da presunção de inocência tem como fundamento a mutação constitucional, eis que visou adequar a norma constante da Carta Magna com o tempo em que vivemos.

Todavia, as mutações, tal qual feito pelo Supremo Tribunal Federal neste caso, não podem ser analisadas de forma isolada, apenas como forma de inovar e adaptar o texto constitucional para com o tempo, haja vista a flagrante necessidade de se respeitar a íntegra da sistemática necessária à mudança, entre elas a observância ao princípio da proibição do retrocesso.

Por efeito, a proibição ao retrocesso estabelece certa rigidez ao processo de evolução quando se trata de adaptação da Lei Maior, porquanto a norma a ser alterada está relacionada com as garantias e direitos fundamentais, quais se tratam da vontade conquistada pelo Constituinte de forma democrática e, justamente por isso, jamais podem ser objeto de limitação.

Destarte, a presunção de inocência está protegida pela proibição do retrocesso, que deveria ser observada pela Corte Maior quando do julgamento do HC n. 126.292/SP.

Inobstante todo o exposto a título de breviário, há, ainda, outros casos em que o acórdão está produzindo resultados indesejados pelos próprios Ministros do Supremo Tribunal Federal.

No caso de o processo ter sido julgado em segunda instância e estar pendente de análise os recursos direcionados aos Tribunais Superiores, em algumas decisões os juízos de primeira instância estão por determinar a imediata prisão do acusado, ainda que não exista requisição ministerial para tanto.

É sabido que todos os casos analisados em segunda instância, os Desembargadores têm aplicado o entendimento do e. Supremo Tribunal Federal e determinado a execução provisória da pena de imediato.

Embora não seja o caso, há, ainda, a situação narrada acima, em que o feito retorna ao juízo de primeira instância ainda pendente de análise os recursos manejados perante os Tribunais Superiores e o Magistrado aplica o novo entendimento do Tribunal Pretoriano, determinando a segregação do acusado, mesmo quando o seu direito a recorrer em liberdade não é objeto de impugnação ministerial.

Quando isso ocorre, o Magistrado está por violar a norma processualista aplicável, mormente o art. 494, da Lei 13.105/2015 (Código de Processo Civil) estabelece que a sentença somente poderá ser alterada pelo juiz para corrigir erros materiais ou em caso de analisar eventuais embargos de declaração.

Além disso, considerando que o Ministério Público não impugnou no momento e forma corretos o direito assegurado ao acusado de recorrer em liberdade, não há como se alterar esta parte da sentença condenatória, porquanto se operou o trânsito em julgado para o Parquet.

Ao atuar desta forma, o juiz está violando diversas normas, tais como o princípio do devido processo legal e o princípio da hierarquia jurisdicional, haja vista que o exame das questões supervenientes à interposição de recurso devem ser decididas pelo Tribunal em que o feito se encontrar.

Neste aspecto, imperioso ressaltar que a jurisdição do juiz de primeira instância se esgota com a publicação da sentença e, no mesmo sentido, do acórdão pelo Tribunal.

Não bastasse, mesmo que haja requerimento incidental do Ministério Público para a execução provisória da pena perante o juízo de primeira instância, quando este não recorre da sentença na parte em que foi conferido ao acusado a possibilidade de recorrer em liberdade, não pode o juiz deferir o referido petitório, pois significaria a violação da coisa julgada e a ofensa a imutabilidade da sentença por parte do prolator.

Via reflexa, admitir a aplicação de um entendimento superveniente e diverso do direito (de o acusado recorrer em liberdade na pendência de análise de seus intentos perante os Tribunais) outrora estabilizado, constitui permissivo para externar o prejuízo ao acusado, na tentativa de justificar a violação ao princípio da non reformatio in pejus, em detrimento ao que já foi reconhecido pela Corte Máxima (HC n. 135.951/DF).

Ao final, não se olvide que estas decisões estão geralmente pautadas unicamente no novo entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal, inexistindo fundamento motivado para a segregação provisória do acusado, ferindo, por essa razão, o princípio da motivação das decisões judiciais.

A análise sistêmica da referida prática é capaz de evidenciar o critério robótico que está sendo aposto no âmbito do Judiciário, ocasionando, então, a repetição automática de um decisum específico, tornando-o genérico e aplicável a todo caso.

O certo é que cada episódio envolve a vida de um cidadão brasileiro que pode e deve exercitar sua defesa da forma mais ampla possível, garantindo-se a ele todas as garantias e direitos fundamentais consagrados em nossa Carta Magna, não se mostrando justo e sequer proporcional que o entendimento da Corte Suprema seja aplicado indistintamente.

Portanto, devem os magistrados, desembargadores e ministros analisar os casos de acordo com suas peculiaridades, observando as garantias asseguradas ao povo, que é o verdadeiro titular do Poder Constituinte, impedindo a prolação de decisões robotizadas sob o pretexto da flexibilização do princípio da presunção de inocência.

Jiancarlo Leobet é advogado