Lucielly Melo
O desembargador Rondon Bassil Dower Filho, da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), defendeu a nulidade de todas as audiências em que o Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco) participou, de forma exclusiva, na instrução da ação penal oriunda da Operação Arqueiro.
O magistrado identificou que o Gaeco atuou isdoladamente no trâmite processual, o que ofendeu gravemente o princípio do promotor natural, assim como o contraditório e a ampla defesa.
Por isso, ele votou, durante sessão do último dia 27, para conceder o habeas corpus impetrado pelo réu Murilo Cesar Leite Gattas Orro para cancelar todos os atos praticados pelo grupo especializado, após o recebimento da denúncia.
Diante da complexidade do tema, o desembargador Gilberto Giraldelli pediu vista, adiando a conclusão do julgamento.
O presidente da Câmara, desembargador Juvenal Pereira, aguarda o voto do colega.
Atuação irregular
O advogado Augusto Bouret Orro, que representa o réu, reclamou, durante a sessão, que apenas o promotor de Justiça Jaime Romaquelli, que integra o Gaeco, participou sozinho das audiências da Arqueiro, o que causou surpresa às defesas. Disse que os integrantes do Gaeco até podem participar da fase instrutória, porém, como coadjuvantes e ao lado do promotor titular.
Para a defesa, o Ministério Público busca de todas as formas colocar o Gaeco para interferir, isoladamente, na fase judicial, por meio de portarias, infringindo o que dispõe na Lei Complementar 119/2002, que criou o grupo e vedou a atuação exclusiva no curso do processo penal.
Já o procurador de Justiça, Benedito Corbelino, rebateu a defesa e afirmou que os promotores do Gaeco podem sim participar da instrução sozinhos.
Aos olhos do relator, desembargador Rondon Bassil, a situação restou comprovada a violação, não só ao princípio do promotor natural, como ao contraditório e à ampla defesa.
Ao longo de seu voto, ele explicou que a Lei Complementar que instituiu o grupo especializado, além de outras normas e portarias que tratam da atribuição do Gaeco, veta a possibilidade da atuação isolada no curso da ação penal.
Rondon esclareceu, contudo, que o promotor de Justiça titular do caso, se entender relevante e conveniente, pode chamar o Gaeco para integrar a instrução ao seu lado.
“Realmente a Lei Complementar 119/2002 não legitima a atuação isolada do Gaeco na fase judicial do processo, mas apenas em conjunto com o promotor de Justiça previamente designada para tanto”.
Demonstrada a inequívoca ofensa do contraditório, da ampla defesa e do promotor natural na ação originária, imperioso o reconhecimento da nulidade absoluta de todos os atos praticados pelo Gaeco após o recebimento da denúncia, ou seja, desde a primeira atuação do promotor de Justiça sem atribuição para atuar isoladamente na instrução
O relator ainda citou que o Colégio de Procuradores de Justiça editou uma resolução em 2019, ampliando as atribuições do Gaeco, especificando a possibilidade da interferência no âmbito judicial, entretanto, essa atuação deve ocorrer de forma concorrente. Mesmo assim, Rondon pontuou que “é notória a impossibilidade do Ministério Público servir-se de resolução do Colégio de Procuradores de Justiça para ampliar as atribuições do Gaeco devidamente delineadas em Lei Complementar Estadual”.
Outro fato que chamou a atenção do desembargador é que os casos que tramitam na 7ª Vara Criminal de Cuiabá são de competência dos promotores lotados na 14ª, 17ª, 18ª e 24ª Promotorias de Justiça Criminais de Cuiabá. Porém, nenhum dos titulares chegou a participar da instrução da Operação Arqueiro.
“Assim não há o que se falar em inexistência de promotor de justiça com atribuição previa para atuar na ação penal, que além de crime organizado, trata do crime contra administração pública (peculato) e contra a ordem econômica (lavagem de dinheiro), matérias que são das atribuições da 14ª, 17ª, 18ª e 24ª Promotorias de Justiça Criminais de Cuiabá”.
“Nesse contexto, considerando exclusiva a atuação do Gaeco, em quatro audiências de instrução, sem qualquer participação de um dos promotores com designação prévia, é nítida a violação do princípio do promotor natural”.
“Acarreta violação contraditório e ampla defesa, quem figurará como acusador. Fica prejudicada o exercício pleno da defesa do réu, que enfrentará a surpresa no trâmite judicial um acusador diverso daquele designado”, complementou.
Rondon ainda considerou “membro do Ministério Público que não pode atuar onde e em qualquer feito de sua preferência a seu bel prazer”.
“Demonstrada a inequívoca ofensa do contraditório, da ampla defesa e do promotor natural na ação originária, imperioso o reconhecimento da nulidade absoluta de todos os atos praticados pelo Gaeco após o recebimento da denúncia, ou seja, desde a primeira atuação do promotor de Justiça sem atribuição para atuar isoladamente na instrução”, concluiu.
Operação Arqueiro
De acordo com a denúncia, o suposto esquema apurado nas Operações Arqueiro e Ouro de Tolo teria ocorrido entre 2012 e 2014, durante a gestão da ex-primeira dama do Estado, Roseli Barbosa e só veio à tona a partir da divulgação de erros em apostilas que estavam sendo utilizadas nos cursos de capacitação em hotelaria e turismo promovido pela Secretaria de Estado de Trabalho e Assistência Social (Setas).
A Setas teria contratado a empresa Microlins e o Institutos de Desenvolvimento Humano (IDH-MT) para executar programas sociais referentes ao “Qualifica Mato Grosso”, “Copa em Ação”, entre outros através do uso de “laranjas”.
A denúncia apontou como líder da organização criminosa, o dono das empresas Paulo César Lemes, que contava com o apoio da sua esposa, Joeldes Lemes.
Segundo o MPE, a Microlins e o institutos IDH-MT e Concluir receberam do Estado quase R$ 20 milhões para executar programas sociais.
Os crimes imputados são: constituição de organização criminosa, corrupção, peculato, lavagem de dinheiro, uso de documento falso e outros.
Ainda conforme a denúncia, alguns funcionários públicos eram lotados na Setas, dentre eles Jean Estevan Campos Oliveira (à época, secretário adjunto e substituto), a ex-secretária de Estado, Roseli Barbosa, a secretária-adjunta Vanessa Rosin Figueiredo, o assessor especial e ordenador de despesas Rodrigo de Marchi e ainda Rosamaria Ferreira de Carvalho, na época presidente da comissão de cadastramento de entidades na Setas, sendo que todos agiam livre e conscientemente de modo a possibilitar o sucesso das empreitadas criminosas do grupo.
O Ministério Público denunciou ainda a ocorrência de três crimes de corrupção, sendo um deles envolvendo valores oferecidos a Roseli Barbosa ou por ela solicitados ou recebidos da organização criminosa, o segundo referente a valores oferecidos a Rodrigo de Marchi e Vanessa Rosin ou por estes solicitados ou recebidos da organização criminosa e o terceiro relativo a valores oferecidos a Jean Estevan Campos ou por este solicitados ou recebidos da organização criminosa.
O MPE pediu a devolução dos valores subtraídos, condenação por dano moral coletivo, suspensão de pagamentos de contratos firmados entre as empresas e a Setas, além de proibição de celebração de novos contratos, indisponibilidade de bens dos denunciados e afastamento dos sigilos bancário e fiscal.