A função social da propriedade foi idealizada prefacialmente por Augusto Comte em seu “Sistema de Políticas Positivas” e posteriormente abalizado com maior precisão por Léon Duguit , que em suas próprias palavras dispôs com grande clareza seus contornos peculiares sobre àquela novel intepretação da propriedade: “O proprietário, é dizer, o possuidor de uma riqueza tem, pelo fato de possuir esta riqueza tem, uma função social a cumprir, enquanto cumpre essa missão, seus atos de propriedade estão protegidos. Se não os cumpre, ou deixa arruinar-se sua casa, a intervenção dos governantes é legitima a obrigar-lhe a cumprir a função social de proprietário, que consiste em assegurar o emprego das riquezas que possui conforme seu destino. ”
Percebe-se, portanto, que o abalizador do instituto angulariza de forma clara que em não havendo a observância da função social em face da propriedade, o Estado se legitima a exercer seu poder de polícia (limitações de direitos individuais em face do interesse da coletividade) para obrigar o proprietário a exercer suas prerrogativas de proprietários dentro da função social que se mereça.
Transpondo continentes e agora dentro de nosso ordenamento jurídico, a função social da propriedade encontra-se envergadura constitucional em face da disposição do artigo 5º, inc. XXIII, 170, inc. III, 184 e 186, devendo ser interpretado de forma sistemática.
O artigo 5º conduz com clareza que “A propriedade atenderá a função social”, já perante o art. 170, inc. III, que é refletido dentro do “Título VII” Da ardem econômica e financeira, aduz-se que “A ordem econômica fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III – a função social da terra”.
Aí sim! Disse tudo! Pergunta ao leitor: O que é função social da propriedade ou da terra? A Constituição Federal tem um senso de humor terrível quando se afunila certas conotações axiológicas, mas vamos adiante.
A Constituição Federal em seu artigo 184, mostra a linha argumentacional da função social a ser utilizada como supedâneo para a desapropriação de imóvel, dispondo que “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.”.
O artigo 186 da CF também é esclarecedor momento em que aponta os contornos da função social da propriedade (enfim), concluindo que “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos; aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
Mas não para por ai, efetivando os contornos constitucionais, advieram vários diplomas normativos objetivando e esclarecendo as angulações da função social da propriedade e lastreando os pontos inerentes a reforma agrária, tais quais: a Lei 8.629/1993, a Lei Complementar 76/1993 e a Lei Complementar 88/1996.
Desmistificando os contornos da função social do imóvel rural o ordenamento aduz cumprir o instituto quando o imóvel: atinja altos graus aproveitamento na utilização da terra e de eficiência em sua exploração; quando tenha como adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis; quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade; quando mantenha a preservação do meio ambiente como a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada a manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinha; quando estenda a observância das disposições que regulam as relações de trabalho ao respeito das leis trabalhistas e dos contratos coletivos de trabalho, bem como das disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais; e, por fim, quando favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais e quando objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóveis.
O desembargador Arnaldo Rizzardo em sua obra Direito Agrário concluiu em “apontar para a forte conotação ideológica a que se presta o assunto da função social da propriedade, servindo de motivação para um série de conflitos que surgiram no campo, em especial incentivados por facções que, maioria das vezes atuam apenas politicamente.”.
De imediato percebemos que alguns itens são complexos demais para se cumprir dentro da própria rotina atual, quiçá, em momentos “difíceis”, tais quais ocasiões econômicas críticas, abalos familiares, período de alterações tributárias, em ocasiões de mudança das regras ambientais, desastres ou pela própria interpretação axiológica ampliada do sentido e vontade da lei, entre outros.
E neste mesmo viés, mais dificultoso ainda seria observar a função social da propriedade rural em todo o perímetro de determinada propriedade rural, fazendo assim, que determinados grupos percebam de forma equivocada que espaços reservados (“reservas florestais”, “áreas de manejo florestal”, entre outros) dentro de determinada propriedade, não esteja cumprindo a função social porque não está sendo aproveitada/explorada economicamente e ali está a motivação para o exercício do esbulho. O que é um grande erro!
Em outros casos, o proprietário rural encontra-se em momento tormentosos (familiares, econômicos, judicialização entre tantos outros), nestas ocasiões de fragilidade financeira e por vezes, inclusive, psicológica, que os escrúpulos dos “movimentos sociais ilegítimos” se despencam e aproveitam dessa vulnerabilidade para fomentar a invasão destes imóveis rurais. E o pior de todo esse contexto, é que estas ocupações são justificadas pela função social da terra, eis o coringa!
Todavia, inexiste em nossa pátria qualquer legislação que leve a entender ou justificar o esbulho com fulcro na função social da terra para obtenção da Reforma Agrária, ao reverso, conforme preleciona, inclusive o art. 2º, Inc. VI da Lei 8.629/93, no sentido da impossibilidade da realização de vistoria ou avaliação do imóvel para reforma agrária nos casos de esbulho, exceto após a desocupação do imóvel e transposto o lapso de dois anos sem atentado ou quatro anos quando da reincidência do esbulho.
Dessa forma, o esbulho como forma de pressionar o “Estado” para efetivar a reforma agrária por intermédio do instituto da desapropriação é inviável em face do óbice legal promovido pela Presidência da República ocasião do vigor da Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001 e ratificada pelo Plenário da Câmara dos Deputados e Casa do Senado Nacional e consequentemente, transformado em lei.
Assim sendo o esbulho/invasão não se justifica tampouco se a propriedade do autor não cumpre a função social e conforme disposição legal, compete sim ao Estado penalizar os proprietários que não cumprem a função social da propriedade obrigando-o a observar a referida faculdade social albergada, utilizando-se da força coercitiva por intermédio do poder de polícia (eis a razão do instituto) e tão somente desapropriar o imóvel para fins de reforma agrária se assim entender pertinente e quando não houver invasão/esbulho.
Pensar de forma diversa é justificar e fomentar o crime e ilícito civil sob um arquipélago de desculpas sociais que só se aglutinam na cognição anarquista pelo ataque e afronta à ordem jurídica e social estabelecida e pelo reflexo de impunidade e inalcançável penalização dos autores.
Aliás, sentimento este que assola nosso país em crime e que faz vivenciarmos um momento em que os valores se confundem refletindo notória sensação de descaso com o que é justo e uma defesa excessiva aos corruptos, criminosos e infiéis a luz da justiça.
Neste trilhar, não sabemos de fato onde irá parar nosso país. Ademais, vivenciamos uma situação tão retrograda, que a sociedade entende que o tão importante e essencial “Direitos Humanos” (fruto de muito sague derramado em outrora) é uma ferramenta de defesa aos criminosos, principalmente em virtude de excessiva defesa àqueles que cometem crimes como nos simples casos de esbulho. Olhemos melhor, o esbulho está se justificando pelo artigo 5º da CF, conduzindo a ideia de quase um direito fundamental. Uma Insanidade!
Por fim, vale ressaltar que no próprio capítulo da Constituição Federal em que se encontra o artigo 184 e 186, que é “Da Política Agrária e Fundiária e da Reforma Agrária”, que mostra-se mais clara a conotação ideológica do “ser social”, não encontrando-se qualquer afinidade quanto a disposição sobre a função social justificar a expropriação por “mãos próprias”, assim, referida interpretação vai muito além do que a intepretação teleológica da Constituição merece e do que tem se mostrado esses “movimentos sociais” ilegítimo que invadem imóvel alheio utilizando-se da bandeira da função social para justificar seus crimes.
O próprio autor da teoria da função social da terra é claro no tocante da penalização para aqueles que não cumprem a função social da terra pelo Estado e não perderem seus bens por prática do crime de esbulho por terceiros que sequer fazem parte do Estado.
Porém, estamos em um momento de quebra de paradigmas, olhando para trás em um passado não tão distante, trazemos a lembrança de inúmeras invasões incitadas pelo próprio proprietário rural de ética duvidosa e em busca de desapropriações nada ortodoxas e se resguardando por contratos de comodatos rurais.
E por outro lado, é notório da existência de inúmeros movimentos sociais legítimos que tentam alcançar a reforma agrária de forma justa e perfeita e que labutam em prol daqueles miúdos de mão áspera que empunham e enxada em busca de seu lugar ao sol.
Traduzindo em miúdos e em momento hodierno, os movimentos sociais, proprietários e produtores que se alinham a ética, sofrem as expensas de alguns grupos que só buscam o lucro fácil, a grilagem de terra e alguns votos.
E assim caminha a sofrida e injustiçada função social da propriedade rural que é justificativa para o cometimento de inúmeros absurdos éticos e sociais, quem sabe Duguit em uma reencarnação breve consiga mudar a interpretação de seu filho social onipotente que em um continente de ilicitudes é justificado quase como um coringa ou a própria “Katchanga Real ” de Marmelstein.
Tabajara Aguilar Praeiro Alves, advogado, pós graduado em Direito Ambiental e Urbanístico pela PUC/MG e em Direito Penal pela Cândido Mêndes/RJ, ex-assessor da Vara de Direito Agrário da Capital, membro do Comitê de Direito Agrário e Comitê de Direito Fundiário da OAB/MT e membro atuante do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM-SP)