O tema prisões sempre foi objeto de grandes debates no Brasil, país cujo número de presos provisórios –– antes da formalização da culpa, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória –– é praticamente maior do que o de presos definitivos.
O parágrafo que inaugura o presente texto deveria causar estranheza, notadamente porque a Constituição da República Federativa do Brasil, no seu conhecido núcleo duro intangível, dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Ora, se ninguém pode ser considerado culpado, senão depois de selada a culpa, a conclusão a que se chega é a de que a prisão cautelar –– que não decorre de sentença penal condenatória transitada em julgado –– constitui medida excepcionalíssima, reservada para casos extremamente gravosos e apenas como mecanismo de tutela do processo – daí dizer-se “cautelar”.
Com efeito, diante da difícil compatibilização dessa modalidade de ingerência estatal no âmbito de liberdade pública do cidadão, a medida excepcional –– considerada extrema ratio da ultima ratio –– guia-se por vetores rígidos de cautelaridade, a saber: (i) provas de materialidade delitiva e (ii) indícios suficientes de autoria (o – nem tão – conhecido fumus commissi delict), conjugado, ainda, ao perigo gerado pelo estado de liberdade daquele que se pretende ver segregado (periculum libertatis).
Na teoria, os estudos sempre foram bastante empenhados, e as diretrizes de restrição à generalização da prisão preventiva, deveras trabalhadas nos mais diversos manuais de direito processual penal.
Na prática forense, entretanto, a matéria de prisões é regida por outros vetores, os quais não guardam coerência com a Constituição Federal, tampouco com a legislação ordinária.
O resultado disso? Basta retornar ao primeiro parágrafo deste texto: o “número de presos provisórios –– antes da formalização da culpa, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória –– é praticamente maior do que o de presos definitivos”.
Diante desse cenário, o legislador tenta, após reiteradas críticas ao caos que vigora na prática, restringir o (ab)uso desse tipo de medida. A luta é incessante, mas os mecanismos de burla hermenêutica parecem sempre ganhar.
O parlamento, após diversas discussões e rígido procedimento legislativo, aprova as leis que, na prática, não raro, em decisões bem pouco fundamentadas, são completamente desvirtuadas, ao argumento de que a melhor hermenêutica orienta no sentido de que a lei, bem... no sentido que o julgador quiser.
O “Pacote Anticrime”, que trouxe inegáveis avanços (mas também retrocessos) em matéria processual, esforçou-se para “aperfeiçoar” muita coisa no processo penal. Nada obstante, em igual medida, mentes inquisitórias e com posturas antirreformistas empenham-se para que as coisas permaneçam no mesmo status quo ante.
Pela sensibilidade do tema, tão caro à sociedade como um todo, as “divagações” são quase mandatórias, notadamente porque é triste ver um Estado, que se diz de Direito, não ter a Lei como parâmetro de regulamentação das tomadas de decisões.
É lamentável saber o que “diz a lei” –– “in abstractu” ––, mas ter certeza de que, “no plano real”, o que ela diz de nada vale, um vez que quem a aplica “diz que ela não queria dizer o que disse”. Assim, nesse disse e não disse, a segurança jurídica desaparece, a incerteza se solidifica e o cidadão fica à mercê da própria sorte (ou azar).
Feitas essas sucintas considerações (ou lamentações), assenta-se que, malgrado se tente fazer do Direito um verdadeiro “Katchanga” , não se esmorecerá na atividade de sustentar o que se crê seja o correto.
Pois bem.
Dentre as várias polêmicas que vêm sendo discutidas atualmente no Brasil, ganha relevo uma que, por óbvio, diz respeito ao tema das prisões, qual seja, a nova disciplina do artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, cuja redação dispõe que:
Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Como se nota, o parágrafo único impõe um dever de revisão periódica, pelo órgão emissor da decisão, da necessidade de manutenção da prisão preventiva. Aqui, já se adianta que não se trata de uma segregação cautelar com prazo certo. Disso não se cuida. Em Terra Brasilis, para usar expressão repetidamente empregada por Lenio Streck, a prisão preventiva segue sendo indeterminada, a ponto tal, aliás, de alguns presos serem literalmente esquecidos no cárcere.
É justamente para evitar esse esquecimento que o legislador cuidou de inserir o parágrafo único no artigo 316, do Código de Processo Penal.
Consigne-se que a retrocitada norma é muito clara, mas não ao ponto de atrair o velho brocardo “in claris cessat interpretatio” , visto que equivocado. Deveras, da leitura do dispositivo, pode-se extrair as seguintes conclusões: (i) o órgão que decretou a prisão preventiva deverá revisar a necessidade de manutenção da custódia cautelar a cada noventa dias; (ii) a revisão deverá ser feita de ofício, ou seja, sem necessidade de provocação das partes; e (iii) a decisão haverá de ser fundamentada.
Essas são as premissas. Se não houver observância a qualquer delas, a conclusão, extraída de raciocínio silogístico, é uma só: torna-se a prisão ilegal.
Por conseguinte, se não há revisão, de ofício, no prazo de noventa dias, ou, em havendo, não estiver devidamente fundamentada, a segregação passa a ser ilegal, e autoridade omissa, coatora.
Sendo o órgão omisso a autoridade coatora, é óbvio que no nonagésimo primeiro dia de prisão será possível a impetração de ordem de habeas corpus, que deverá ser concedida pelos tribunais.
Essa leitura parece não dar margem para dúvida.
Para a Ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, no entanto, “o texto não quis dizer o que disse”:
Pretender o intérprete da lei nova que essa obrigação – de revisar, de ofício, os fundamentos da prisão preventiva, no exíguo prazo de 90 dias, e em períodos sucessivos – seja estendida por toda a cadeia recursal, impondo aos tribunais (todos abarrotados de recursos e entupidos de habeas corpus) tarefa desarrazoada ou, quiçá, inexequível, sob pena de tornar a prisão preventiva ‘ilegal’, é o mesmo que permitir uma contracautela de modo indiscriminado, impedindo o Poder Judiciário de zelar pelos interesses da persecução criminal e, em última análise, da sociedade.
Como dito anteriormente, é lamentável saber o que “diz a lei” –– “in abstractu” ––, mas ter certeza de que, “no plano real”, o que ela diz de nada vale se quem a aplica “diz que ela não queria dizer o que disse”.
A razão, com a devida vênia, não está com a Ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, mas, sim, com o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, que, no bojo do RHC n.º 183.890, ao se manifestar sobre o parágrafo único do artigo 316, do Código de Processo Penal, leu o que nele está escrito, posicionando-se da seguinte maneira:
O parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal dispõe sobre a duração da custódia preventiva, fixando o prazo de 90 dias, com a possibilidade de prorrogação, mediante ato fundamentado. Apresentada motivação suficiente à manutenção da prisão, desde que levado em conta o lapso de 90 dias entre os pronunciamentos judiciais, fica afastado constrangimento ilegal. O paciente está preso, sem culpa formada, desde o mês de janeiro de 2018, sendo a custódia mantida, mediante decisões proferidas em 17 de abril e 19 de dezembro de 2019. Uma vez não constatada a existência de ato posterior sobre a indispensabilidade da medida, formalizado nos últimos 90 dias, tem-se desrespeitada a previsão legal, surgindo o excesso de prazo.
Em que pese haja dificuldades, já no começo da vigência do denominado “Pacote Anticrime”, para fazer cumprir as modificação legislativas, a luta pela prevalência da Lei não pode ser deixada de lado.
Nesse ponto, sem qualquer utopia, defende-se que o regramento não é tão claro ao ponto de não precisar de interpretação, sobretudo num País em que muitos julgadores se recusam a ler o que está escrito. É dizer, que (i) o órgão que decretou a prisão preventiva deverá revisar a necessidade de manutenção da custódia cautelar a cada noventa dias, (ii) em revisão ex officio e (iii) de forma fundamentada não se duvida.
Para além dessa interpretação, cuja negação não possui fundamento jurídico coerente, entende-se que, malgrado o dispositivo faça menção à prisão, estão nele abarcadas as medidas cautelares substitutivas da cautelar pessoal máxima. Isso porque, tal qual ocorre com a prisão preventiva, em relação às cautelares diversas, também hão de ser observados os pressupostos autorizadores, consubstanciados no fumus comissi delict e no periculum libertatis.
Com efeito, se a medida cautelar substitui a prisão, é forçoso concluir que os requisitos da prisão preventiva devem estar presentes, justo porque não se pode substituir o que inexiste. A propósito, Lenio Streck e Aury Lopes Jr., ao discorrerem sobre o artigo 319, do Código de Processo Penal, bem observam que “o dispositivo trata de medidas cautelares substitutivas e diversas da prisão, aplicáveis para o caso de cabimento de prisão”.
Ainda conforme os autores:
Não teria sentido falar em medidas 'cautelares diversas da prisão' se não estivessem presentes os requisitos...da prisão. As medidas diversas substituem a prisão. Portanto, sem requisitos de prisão, a substituição desaparece. O artigo 319 não é autônomo. Ele não deveria ter vida fora da cautelaridade. O artigo 319 não tem essa dimensão de autonomia — que vira plenipotenciariedade e autossustentado.
Lendo o dispositivo, sempre achamos claro que, para aplicar uma medida substitutiva, teria que haver, antes, algo a substituir, qual seja, a prisão. Que possui requisitos. As medidas alternativas somente podem ser utilizadas quando cabível a prisão preventiva, mas, em razão da proporcionalidade, houver outra restrição menos onerosa que sirva para tutelar aquela situação fática.
Deveras, não é porque as medidas cautelares representam um minus em relação à prisão preventiva que poderão, apenas por isso, perdurar ad aeternum. Todo o oposto. São, as cautelares, medidas menos invasivas (critério de proporcionalidade), mas nem por isso deixam de ser invasivas (critério ontológico).
Nessa linha de intelecção, sendo as medidas cautelares regidas pelos vetores interpretativos aplicados à prisão, estas somente poderão vigorar enquanto estritamente necessárias à tutela de alguma situação processual. Ou seja, regem-se, também e da mesma forma, pela cláusula clausula rebus sic estantibus.
Dessarte, o comando do parágrafo único do artigo 316, do Código de Processo Penal, não se aplica apenas às prisões, estando em perfeita sintonia com as medidas cautelares diversas, devendo funcionar, também em relação a elas, como verdadeira imposição de análise regular e periódica do panorama processual, mormente porque os casos em que os réus respondem em liberdade tendem a demorar mais, razão pela qual a reanálise revela-se mandatória.
Com base nesses fundamentos, defende-se que, não obstante o sobredito dispositivo diga respeito à prisão cautelar, as cautelares diversas também devem ali estar inseridas, por questões não só de legalidade, mas também, e sobretudo, de coerência dogmática. Assim, passados noventa dias, se não houver decisão, de oficio, fundamentada, atestando a necessidade de manutenção das cautelares, as medidas tornar-se-ão ilegais, tal qual ocorre com a cautelar pessoal máxima.
Valber Melo é Advogado Criminalista. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino. Mestrando e Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL). Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Especialista em Ciências Criminais. Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra - FDUC/PT–IBCCRIM. Professor de Direito Penal e Processual Penal. Coautor do livro: "Colaboração Premiada - Aspectos Controvertidos", publicado pela Editora Lúmen Juris. Conselheiro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas em Mato Grosso – ABRACRIM/MT. Presidente da Comissão de Direito Penal do IAMAT.
Filipe Maia Broeto é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires - FDUBA/ARG. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/PUC-MG, em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes – UCAM, Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT–IBCCRIM e em Direito Público pela Universidade Candido Mendes – UCAM. Membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT, e Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM.