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Opinião Quinta-feira, 10 de Agosto de 2023, 05:29 - A | A

10 de Agosto de 2023, 05h:29 - A | A

Opinião /

A prevalência da jurisdição criminal sobre as demais searas

Quando se reconheça a inexistência do fato ou que o acusado não tenha sido o seu autor, situações em que a responsabilidade, em processo civil ou administrativa, ficam automaticamente prejudicadas



Área do direito: Constitucional; Criminal; Internacional; Improbidade Administrativa.

Resumo: A concomitante possibilidade de responsabilização nas esferas criminal, cível e administrativa deve ser analisada à luz do da integridade do ordenamento jurídico, cuja coerência e uniformidade não deve desprezar o valor normativo dos direitos fundamentais implícitos, decorrentes dos Tratados Internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. A independência da jurisdição criminal em face à responsabilização por ato de improbidade administrativa, estipulada no §4º, do artigo 37, da Constituição Federal, por consubstanciar norma de eficácia limitada, pressupõe indispensável interpositio legislatoris. Havendo conflito aparente de normas entre os artigos 935 do Código Civil, e o §3º, do 21, da Lei de Improbidade Administrativa, com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que em seu artigo 8º, item 4, trata do óbice de que o acusado seja submetido a novo processo quando absolvido por decisão com trânsito em julgado, deve prevalecer, diante do status de supralegalidade a previsão da norma de direito internacional, de modo que a absolvição criminal seja óbice para o prosseguimento ou deflagração de processo por ato de improbidade administrativa e/ou processo administrativo disciplinar.

Palavras-chave: Prevalência da jurisdição criminal - independência relativa entre as instâncias criminal, civil e administrativa – controle de convencionalidade – absolvição criminal – eficácia obstativa – investigações – apurações – improbidade administrativa. Convenção Internacional de Direitos Humanos que assume status de norma supralegal – conflito aparente de normas que se resolve pela aplicação do critério hierárquico.

Sumário: 1. Introdução – 2.  Desenvolvimento 3. Conclusão.

1. Introdução

O art. 5º de nossa Constituição Federal elenca diversos direitos fundamentais que se relacionam à instância criminal, dentre os quais: a instituição do júri (XXXVIII); o princípio da legalidade e da anterioridade em matéria penal (XXXIX); o princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica (XL); a individualização da pena (XLV e XLVI); o princípio do juiz natural (LIII); o princípio do devido processo legal (LIV); o princípio do contraditório e da ampla defesa (LV); e o princípio da não culpabilidade (LVII).

Como decorre da sanção penal a possibilidade de constrição do direito fundamental à liberdade, estrutura-se o processo penal sobre garantias que possam efetivamente proteger a liberdade do indivíduo de investidas autoritárias de agentes estatais, expressas em princípios e regras que permitam de um lado a dedução da pretensão punitiva do Estado, e de outro, o mais amplo exercício ao direito de defesa, como pressupostos para a aplicação de uma reprimenda justa e válida, assumindo a ciência penal indispensável importância para a tutela de direitos fundamentais, e de sua compatibilização com o interesse público de que os responsáveis pela prática de delitos sejam devidamente responsabilizados.

Em paralelo à responsabilidade criminal, a norma constitucional estatui exemplificativamente situações que demonstram a convivência das searas criminal, civil e administrativa, como é o caso do art. 53, que trata da imunidade material dos deputados e senadores, ao estipular a inviolabilidade civil e penal, por quaisquer de suas opiniões palavras e votos, e do art. 58, § 3º, que estabelece que as comissões parlamentares de inquéritos remeterão suas conclusões ao Ministério Público para a promoção da responsabilidade civil ou criminal dos infratores. Na seara ambiental a norma constitucional também foi explícita na multiplicidade de instâncias ao apregoar “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (art. 225, §3º). 

A responsabilidade por ato de improbidade administrativa está contemplada no § 4º do art. 37 da Constituição, e dispõe que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação prevista em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”, e trata de norma constitucional de eficácia limitada, cujos efeitos depende da integração por norma infraconstitucional, que por sua vez está materializada na Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, recentemente alterada pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, estabelecendo as hipóteses de atos de improbidade, regras de prescrição e outras disposições correlatas.

Ressoa relevante discutir o mito da independência entre as instâncias civil, criminal e administrativa, sobretudo diante do esforço do constituinte em delinear de forma minudente um conjunto de princípios e regras penais e processuais penais que conformam a atividade estatal do exercício do direito de punir a rígidos padrões, necessário para por a salvo de qualquer espécie de arbítrio a atuação da sanção penal.

Além disso, pretende-se desvelar que a norma jurídica contida no §4º, do artigo 37, da Constituição Federal, quando refere à relação de independência da responsabilização por ato de improbidade administrativa em relação à jurisdição criminal, põe em destaque esta última, e por se tratar de norma de eficácia limitada que clama integração para a produção de todos os seus efeitos, imperioso que seja analisado o conflito aparente de normas entre disposição do Código Civil e da Lei de Improbidade Administrativa com norma de direito internacional prevista no Pacto de São José da Costa Rica. 

Pretendemos, portanto, com o presente trabalho, lançar luzes sobre o debate da convivência e intercorrelação entre as instâncias sancionatórias, não com a pretensão de repudiar a multiplicidade de instâncias, mas com o intento de esboçar dentro do esquema normativo-hierárquico uma solução interpretativa que concilie esta multiplicidade de instâncias com a integridade e unidade do ordenamento jurídico, sob o reconhecimento, com base em normas de direito internacional, sobre a prevalência da jurisdição criminal em caso de sentença absolutória qualificada pelo trânsito em julgado.

2. Desenvolvimento.

Uma leitura cuidadosa do referido § 4º do art. 37 da CRFB/1988 permite inferir que a responsabilidade por ato de improbidade administrativa não exclui, condiciona ou impede o exercício da ação penal cabível pelo mesmo fato, sendo, portanto, correto afirmar a existência de independência relativa entre estas instâncias sancionatórias.

Parece-nos já em uma primeira leitura que o constituinte pôs em destaque a jurisdição criminal, e não o contrário. Isso porque, tratando no dispositivo sobre o ato de improbidade administrativa fez a expressa ressalva de que este não prejudica o exercício da ação penal cabível. Houvesse a preconizada independência entre estas esferas, teria dito a norma que uma esfera não prejudica a outra, mas a norma é clara ao tratar que a ação de improbidade não impede a ação penal, não o contrário.

Esta impressão é reforçada a nosso sentir pelo cuidado que o constituinte originário dispensou ao elencar um extenso rol de direitos fundamentais que encerram um bloco normativo cuidadosamente voltado à aplicação das sanções penais, o que não fez para as sanções de natureza extrapenal.

 Ademais, tamanha é a proeminência da jurisdição criminal que tão somente em relação a esta o constituinte houve por bem, em razão da relevância de certas funções, estipular foro por prerrogativa de função perante os Tribunais de Justiça, Eleitoral, Regional Federal, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, não dispondo de foro especial em matéria de improbidade administrativa.

Arrematamos esta conclusão, sobre o protagonismo da jurisdição criminal sobre as demais, também pelo fato de que cabe ao processo criminal a tutela e afetação dos bens jurídicos de maior protagonismo em nosso Estado de Direito, a exemplo da vida, da liberdade, do patrimônio, dentre outros. Logo, cabendo a esta esfera sancionatória a seletividade e relevância por estar associada à persecução de condutas que digam respeito à ameaça ou lesão aos mais relevantes bens jurídicos, não poderia jamais submeter-se a outra esfera de responsabilidade.

Segundo doutrina e a jurisprudência, a independência entra as instâncias sancionatórias civil, criminal e administrativa seria apenas relativa. Como regra, segundo se sustenta, seriam as instâncias independentes, mas de forma excepcional a jurisdição criminal vincularia a cível, pois normas jurídicas infraconstitucionais disciplinam que em duas hipóteses a absolvição criminal vincula as esferas cível e administrativa, obstando a inauguração ou prosseguimento de processos cíveis ou administrativos pelo mesmo fato.

São exemplos de normas que tratam sobre a projeção de efeitos da absolvição criminal em outras searas estão estabelecidas no art. 935 do Código Civil, que dispõe que “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”, e o art. 21, § 3º, da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), segundo o qual “as sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria”. Do mesmo modo o Código de Processo Penal dispõe pelos artigos 65 e 66, respectivamente “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito” e “não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”.

Sobre a projeção de efeitos na esfera administrativa, exemplifiquemos com o artigo 126, da Lei 8.112/90.

Note-se, portanto, que as citadas normas estabelecem que em situações restritivas a jurisdição criminal projetará efeitos na seara civil e administrativa. Vale dizer, tão somente quando se reconheça a inexistência do fato ou que o acusado não tenha sido o seu autor, situações em que a responsabilidade, em processo civil ou administrativa, ficam automaticamente prejudicadas diante da prevalência da seara criminal.

Apesar da legislação pátria ter apenas mitigado a tão propalada independência entre as instâncias sancionatórias, já se colhe da jurisprudência outros exemplos em que a jurisdição criminal operou eficácia obstativa em relação à esfera cível e/ou administrativa, quando se trata de responsabilização pessoal pelo mesmo fato.

Vejamos, por exemplo, a ementa do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Habeas Corpus de nº 601533/SP:

“AGRAVO REGIMENTAL EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM HABEAS CORPUS. AGRAVO EM EXECUÇÃO. FALTA GRAVE. INDEPENDÊNCIA MITIGADA DAS INSTÂNCIAS. WRIT INDEFERIDO LIMINARMENTE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. A absolvição criminal só afasta a responsabilidade administrativa quando restar proclamada a inexistência do fato ou de autoria. 2. Embora não se possa negar a independência entre as esferas - segundo a qual, em tese, admite-se repercussão da absolvição penal nas demais instâncias apenas nos casos de inexistência material ou de negativa de autoria -, não há como ser mantida a incoerência de se ter o mesmo fato por não provado na esfera criminal e por provado na esfera administrativa. Precedente. 3. Em hipóteses como a dos autos, em que o único fato que motivou a penalidade administrativa resultou em absolvição no âmbito criminal, ainda que por ausência de provas, a autonomia das esferas há que ceder espaço à coerência que deve existir entre as decisões sancionatórias. 4. Agravo regimental provido a fim de determinar o cancelamento da falta grave apurada no Procedimento Administrativo Disciplinar n. 41/2017 (E21/934137/2011) e de todos os efeitos dela decorrentes”. (STJ, 6ª Turma, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 21/09/21).

Referido acórdão está lastreado nos seguintes precedentes, do próprio Superior Tribunal de Justiça: RHC n. 33.827/RJ, sexta turma, e HC n. 289.123/SP, quinta turma.

Em matéria de repercussão da jurisdição criminal sobre a esfera do processo de responsabilização por ato de improbidade administrativa, bastante representativo é o acórdão proferido nos autos da Reclamação nº 41.557/SP, do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, assim ementado: 

“Reclamação constitucional. 2. Direito Administrativo Sancionador. Ação civil pública por ato de improbidade administrativa. 3. Possibilidade de se realizar, em sede de reclamação, um cotejo analítico entre acervos probatórios de procedimentos distintos. Caracterizada a relação de aderência temática entre a decisão reclamada e a decisão precedente. 4. Identidade entre os acervos fático-probatórios da ação de improbidade e da ação penal trancada pelo STF nos autos do HC 158.319/SP. 5. Negativa de autoria como razão determinante do trancamento do processo penal. Obstáculo ao reconhecimento da autoria na ação civil de improbidade. Independência mitigada entre diferentes esferas sancionadoras. Vedação ao bis in idem. 6. Liminar confirmada. Reclamação procedente. Determinado o trancamento da ação civil pública de improbidade em relação ao reclamante, com sua exclusão do polo passivo. Desconstituição definitiva da ordem de indisponibilidade de bens”.  

O que distingue esse último aresto é sobretudo o fato de que a vinculação projetada pela seara criminal à esfera da improbidade administrativa tenha decorrido não de uma sentença de absolvição, mas do trancamento de ação penal por decisão do próprio Supremo Tribunal Federal, nos autos do HC n. 158.319/SP. 

Ao par das situações exemplificativa referidas, pelas quais já se reconhece a vinculação da seara do processo administrativo disciplinar e da ação de improbidade administrativa à autoridade da sentença criminal, podemos apontar a ocorrência de antinomia jurídica aparente entre os referidos artigos do Código Civil e da Lei de Improbidade Administrativa, com o disposto no item 4, do artigo 8º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgado através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, que estabelece que “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá se submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.

Diversamente das normas do direito interno brasileiro, a convenção não estabeleceu qualquer espécie de exceção à projeção de efeitos da absolvição [criminal] do acusado, que obstará novo processo pelos mesmos fatos desde que a decisão absolutória tenha passado em julgado, isso é, não seja mais suscetível de recurso. Daí se extrai o conflito aparente entre a legislação pátria que estabelece eficácia obstativa da jurisdição criminal sobre a seara civil apenas em duas situações (inexistência de fato e estar provado que o acusado não é o autor do crime), com a norma internacional que não faz a mesma limitação.

O Código de Processo Penal estabelece, por seu art. 386, as hipóteses de absolvição, quais sejam: i) estar provada a inexistência do fato; ii) não haver prova da inexistência do fato; iii) não constituir o fato infração penal; iv) estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; v) não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; vi) existirem circunstâncias que excluem o crime ou isentem o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência; vii) não existir prova suficiente para a condenação.

Pela letra do art. 935 do Código Civil e do § 3 do art. 21 da Lei de Improbidade Administrativa, tão somente a absolvição fundada nos incisos I (estar provada a inexistência do fato) e IV (estar provado que o réu não concorreu para a infração penal) produzem efeito sobre a esfera cível, enquanto as demais sentenças absolutórias não teriam o condão de afetar de modo algum a deflagração ou continuidade dos processos civil e administrativo.

Porém, da análise da Convenção Americana sobre Direitos Humanos é possível identificar que os fundamentos da absolvição, com trânsito em julgado, impedem que o acusado seja processado pelo mesmo fato, mesmo nas situações em que, por exemplo, tenha se dado a absolvição por falta de provas, visto que a norma internacional não especificou ou limitou hipóteses de vinculação da seara cível à criminal.

Esta hipótese, por sinal bastante corriqueira nos foros, coloca a situação em que no processo criminal, após seu regular e válido desenvolvimento, não logre o autor fazer a prova necessária para subsidiar a condenação criminal, o que para a corrente predominante da doutrina e jurisprudência hodiernas não é óbice para o início ou prosseguimento do processo cível que visa a responsabilização por ato de improbidade administrativa. O argumento usado à saciedade pelos que defendem esta consequência seria a já mencionada independência entre as instâncias.

Não se nega, como anunciado já no introito, a existência de uma independência de instâncias sancionadoras, ainda que relativa ou mitigada, prevista inclusive em norma constitucional e mesmo em normas infraconstitucionais, mas que essa multiplicidade seja reconhecida tão somente como a possibilidade da coexistência de múltiplos processos pelo mesmo fato em esferas diferentes até que sobrevenha uma sentença penal absolutória com trânsito em julgado, fato jurídico processual que tem o condão, justamente pela normatividade que decorre do mencionado dispositivo da Convenção Americana dos Direitos Humanos.

Isso porque, a se considerar a natureza jurídica da convenção de direitos humanos em cotejo com as normas do direito pátrio, há de se notar que as demais hipóteses que fundamentam decisões absolutórias no processo criminal haverão de obstar o prosseguimento ou deflagração de processo cível de responsabilização por ato de improbidade administrativa e/ou processo administrativo disciplinar, inclusive quando o fundamento for a falta de provas suficientes para a condenação.

Poderia subsistir dúvida acerca da absolvição fundada no inciso III do art. 386, do Código de Processo Penal, relativo a não constituir o fato infração penal. Nesse caso,  reputa-se inexistir fundamento para a projeção de efeitos da seara criminal nas demais esferas de responsabilização, pois não versando a imputação figura típica sob a perspectiva criminal, não há que se falar de prevalência de uma esfera sobre a outra, sendo plenamente possível que a conduta configure ato de improbidade administrativa ou dê ensejo à ação de responsabilização civil para ressarcimento de danos, e ainda possa ser objeto de apuração em processo administrativo disciplinar.

As demais hipóteses de absolvição, diferentemente, mesmo que relacionadas à falta de provas ou quando reconhecem fundamento para a exclusão do crime ou da punibilidade, devem projetar efeitos vinculativos (obstativo) na seara civil e administrativa, sob pena de flagrante violação da norma de direito internacional expressa no item 4, do art. 8º, da mencionada convenção de direitos humanos.

Essa antinomia jurídica entre as normas internas e a norma de direito internacional demanda resolução para afirmar a unidade e integridade do sistema jurídico, sendo aplicável, no caso, o critério hierárquico para a resolução do conflito aparente.

Estabeleceu o Constituinte Originário que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (art. 5º, § 2º, da CRFB/1988), admitindo-se que compõem o ordenamento jurídico os denominados direitos fundamentais implícitos. 

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) foi promulgada pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992 e através do julgamento do RE 466.343, com repercussão geral (Tema 60), os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram que os tratados e as convenções internacionais sobre direitos humanos, se não incorporados como emenda constitucional (art. 5º, § 3º, CF) , têm natureza de normas supralegais, de modo que, segundo a Suprema Corte, o caráter especial desses diplomas lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém, acima da legislação infraconstitucional com eles conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.

Portanto, a norma de direito internacional apregoa uma indisfarçável prevalência da jurisdição criminal sobre as searas civil e administrativa, o que indica a conclusão de que ocorrendo absolvição transitada em julgado, não será lícito manter ou iniciar outro processo, seja de qual natureza for (e.g. responsabilização por improbidade e/ou processo administrativo disciplinar), pelo mesmo fato, exceto, naturalmente, se o fundamento da absolvição estiver escorado na conclusão de que o fato apurado não é crime, visto que por um critério lógico cessa a ideia de vinculação e prevalência de uma esfera sobre outra na medida que a absolvição por este fundamento extirpa a análise de vinculação, pois ter-se-á apenas a análise residual se aquela mesma conduta se amolda em outro plano sancionatório.

Essa prevalência, decorrente da aplicação da norma internacional examinada em detrimento de dispositivos assemelhados do ordenamento pátrio, é decorrência da natureza supralegal da convenção internacional por versar sobre direitos humanos, cujo método de compreensão jurídica já foi aplicado quando o Supremo Tribunal Federal concluiu pela aplicação do Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, item 7) que veda a prisão civil por dívida e não excepciona a prisão do infiel depositário, de forma que prevaleceu sobre dispositivos internos (art. 1.287 do Código Civil de 1916 e Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969), afastando-se a possibilidade de prisão do infiel depositário (RE nº 466.343/SP – Ministro Cezar Peluso). 

3. Conclusão. 

De se concluir, portanto, que afigurando-se a norma do §4º, do artigo 37, da Constituição Federal como norma constitucional de eficácia limitada, cuja integralidade de efeitos depende de interpositio legislatoris, exsurge antinomia jurídica entre os artigos 935 do Código Civil, e §3º, do artigo 21, da Lei de Improbidade Administrativa em relação ao item 4, do artigo 8º, da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), a exigir indispensável controle de convencionalidade. 

Nesta esteira, o Supremo Tribunal Federal já consagrou entre nós o status supralegal dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, daí que os dispositivos do ordenamento jurídico pátrio interno, cedem espaço diante da maior hierarquia da referida convenção, alcançando-se a conclusão de que ocorrendo absolvição criminal ocorrerá eficácia obstativa ao prosseguimento ou deflagração de processo cível em razão de ato de improbidade administrativa ou processo de natureza disciplinar, diante da prevalência da jurisdição criminal, disposta em sede de convenção internacional.

Além dessa conclusão decorrer da interpretação hierárquica entre as normas antinômicas, no caso de uma convenção de direito sobre direitos humanos versus leis domésticas, extrai-se da própria Constituição Federal a proeminência da esfera criminal sobre as demais, afinal, não é à toa que lhe atribui a característica de ultima ratio do ordenamento jurídico em matéria de responsabilidade, com a previsão de rol extenso no texto constitucional acerca de normas penais e processuais penais. 

Acresça-se que a existência de foro por prerrogativa de função apenas em matéria criminal põe uma vez mais em destaque essa proeminência da jurisdição criminal sobre a civil, de modo que não se pode pretender que essa se submeta àquela, sobretudo quando as decisões em matéria criminal são proferidas por órgão jurisdicional que ocupa posição mais elevada na estrutura verticalizada do Poder Judiciário, que não poderia ser submetida à decisão de outro órgão judiciário de menor hierarquia. A racionalidade do sistema judiciário não toleraria conclusão diversa. 

Se, portanto, no bojo de um processo criminal, com observância dos direitos fundamentais da pessoa processada criminalmente, chegar-se à conclusão de que a absolvição é medida impositiva, e sendo alcançada pelo trânsito em julgado, será impositiva e produzirá efeitos obstativos em relação a processos civis e administrativos em curso ou futuros, sendo inadmissível que o acusado seja processado pelos mesmos fatos, independentemente da esfera. 

*Deosdete Cruz Junior é Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso. Atualmente exerce o cargo de Procurador-Geral de Justiça